24.11.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005
TEATRO
Como no filme de Werner Herzog, grupo enfrenta desafios locais e de produção para levar à cena o espetáculo “BR3”
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O marinheiro de convés Fábio Augusto Soares Vargas, 23, nunca foi ao teatro. Há três anos trabalhando nas obras de rebaixamento da calha do rio Tietê, o teatro vai até ele.
Nascido em Presidente Epitácio (SP), onde costumava cabular aulas para tomar banho num dos braços do rio Paraná, Vargas ensinou um dos atores do grupo Teatro da Vertigem a pilotar o bote (ou voadeira) na peça “BR3”, que, a partir de amanhã, tem ensaios abertos.
Esta fase tem ingressos gratuitos por conta da Lei de Fomento ao Teatro. A data da estréia ainda não foi definida.
A bordo do barco Almirante do Lago, 40 espectadores vão acompanhar as cenas que acontecem na própria embarcação ou lá fora, em pequenas plataformas, estruturas de pontes ou nos terrenos inclinados das margens. São cerca de 4,5 km entre o Cebolão de Pinheiros e o viaduto da rodovia Bandeirantes.
Com dramaturgia de Bernardo Carvalho, estréia do romancista e colunista da Folha no teatro, o espetáculo acompanha a saga de três gerações de uma família de origem nordestina.
Vai do canteiro de obras de Brasília, no final dos anos 50, até o salve-se-quem-puder do tráfico nas periferias dos anos 90, como a de Vila Brasilândia, na zona norte paulistana. No enredo, a voragem alcança ainda a selva, na fronteira do Brasil com Bolívia.
Carvalho integrou extenso processo colaborativo, que teve como eixo a chamada Expedição BR3, realizada em 2004, em que o Vertigem conheceu in loco os territórios e as gentes de Brasilândia, Brasília e Brasiléia (AC).
No mês passado, a reportagem assistiu a dois ensaios das primeiras cenas de “BR3”. É, de longe, a produção mais complexa do grupo, que já venceu desafios na ocupação de espaços como igrejas (“O Paraíso Perdido”, 92), hospitais (“O Livro de Jó”, 95) e presídios (“Apocalipse 1,11”, 2000).
Aqui, não é o Vertigem que determina o espaço, mas o espaço que se impõe. O grupo “negocia” com ele desde agosto. Exemplo: o barco usado nos primeiros ensaios, o Explorer, “descia” o rio sem problemas. Quando foi incorporado o barco oficial (26 m de comprimento x 7 m de largura), descobriu-se que era impossível manobrar com agilidade em alguns pontos em que precisava atracar. Resultado: inverteu-se o curso da navegação, já que é mais fácil “subir” o rio.
Ponta de iceberg da empreitada que remete o diretor Antônio Araújo ao “Fitzcarraldo” (1982), do cineasta alemão Werner Herzog. O filme mostra a obsessiva aventura do personagem-título em levar a ópera para o coração da selva amazônica.
De volta ao trabalhador do Tietê, Vargas sente-se entusiasmado em contribuir com o espetáculo. “Com o teatro, as pessoas vão prestar mais atenção ao rio. O povo da cidade tem nojo, mas é sujeira dele mesmo. Se cada um se conscientizasse, ele estava mais limpo”, afirma Vargas.