5.10.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de outubro de 1997. Caderno A – 4
Atriz é destaque da montagem dirigida por Jorge Takla e centrada no mito datragédia grega
VALMIR SANTOS
São Paulo – Começa o espetáculo e Medéia respira fundo, arranhando o silêncio que é quebrado logo em seguida, com uma sequência verborrágica de tirar fôlego, literalmente. O prólogo de Walderez de Barros, no papel-título, escancara para o público, de chofre, que estamos diante de uma avalanche de emoção de estado bruto – e lapidar.
Uma verdadeira dama do teatro brasileiro, a fazer páreo com uma Fernanda Montenegro, uma Marília Pêra, Walderez é o álibi mais convincente do diretor Jorge Takla para a abordagem do mito na adaptação que fez para a tragédia grega. Takla visita os textos de Eurípedes e Sêneca para singrar o homem moderno e iluminar suas vicissitudes.
A Medéia que Walderez mostra é menos a mãe assassina, capaz de pôr fim à vida de seus filhos em nome do amor. Expõe, sim, a permissividade da alma em sua queda. Mata para punir Jasão, o marido que a troca por uma princesa. “Quero que eles sejam filhos de rei”, justifica um Jasão calculista, frio até à medula no seu invólucro de sábio. No trânsito entre os limites da loucura e da razão, Medéia é movida pelo coração que bate em seu peito.
Sabe-se que clássicos não são para qualquer um. Paulo Autran esperou anos a fio para chegar aos pés de Rei Lear, levado à cena em temporada recente. Claro, Walderez não abraçou Medéia por acaso. No palco do Sesc Anchieta, cada gesto, cada olhar, cada palavra a propagar pelo ar, tudo reverte em esplendor, em arrebatamento. Walderez é vibrante. Com seu corpo entranhado na personagem, resta o desequilíbrio atordoante, o transe diante do horizonte finito. Nada é desperdiçado.
Na “Medéia” de Takla, ela é epicentro. O determinismo masculino da tragédia é como que dissimulado pela presença da atriz. Jasão (Francarlos Reis), Creonte (Oswaldo Mendes) e o Coro (seis rapazes) giram em torno da mãe-esposa-abandonada, depois expatriada, desolada. E tamanha a presença e a força de Walderez em cena, que a memória pesca a “Des-Medéia” de Denise Stoklos, aquela que dá a volta por cima e vira o jogo. Mas os mitos são mitos…
Como diretor de óperas, também, Jorge Takla dá um tratamento etéreo à montagem que confere com uma perspectiva contemporânea da tragédia. A luz que assina ao lado de Davi de Brito, imprime um visual difuso no tempo e no espaço. O cenário de Charles Moeller, com suas portinholas e paredes de reboco, também acentuam essa distensão. O deslocamento do Coro e sua interação com os personagens centrais tangencia a ação com fluência.
A montagem de “Medéia” conquista pela sua limpidez e concomitante visceralidade. Consegue ser funcional sem aborrecer. Emociona pelo que há de mais sagrado no teatro: o ator. A diva Walderez de Barros, esbanjando maturidade, leva nas costas a grandiosidade do papel e a responsabilidade de ter o público nas mãos, do início ao fim. Melhor: transcende, porque sua Medéia é memorável.
Medéia – De Eurípedes e Sêneca. Adaptação e direção: Jorge Takla. Tradução: Mário da Gama Kury. Com Carlos Teixeira, César de Castro, Eliézer de Souza, Kao Monteiro, Otávio Juliano, Rodrigo Lombardi e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 20,00 e R$ 10,00 (comerciários e estudantes). Até 2 de novembro.
“Noturno” quer expurgar a modernidade |
São Paulo – Nos seis anos de intervalo da estréia do musical “Noturno”, as mudanças pessoais não foram menos aceleradas do que as globais. Em 1991, a bandeira da paz e amor a la anos 70 já se mostrava defasada com os tempos de individualização sem fim. Agora, na reestréia, a sensação é de que o roteiro assinado e dirigido por Oswaldo Montènegro continua navegando contra a corrente.
Na cruzada contra “a modernidade clara”, contra “o mundo conformado”, o cantor e compositor de “Bandolins” faz um libelo à existência poética. Ou sseja, quer através da música transmitir toda uma filosofia de vida canalizada para o prazer.
“Noturno” exorciza a velocidade com o que resta de utopia possível. Desacelera para dar espaço ao sonho, à arte por extensão.
É uma pretensão e tanta para uma platéia que beira o histerismo a cada canção, urrando e aplaudindo como se num auditório de programa de TV.
A contradição, que se dá também dentro do palco, no elenco gigante de 60 jovens bastante esforçados – e empolgados – enfim, a contradição reflete o próprio estado de coisas a que chegamos: centenas de adolescentes assistem ao que não têm condições de colocar em prática na vida real, por impotência, que seja, diante do “sistema”.
Como numa das falas do texto, os espectadores de “Noturno” são jovens que, em sua maioria, saem à noite para procurar o que nunca vão encontrar. Não é à toa que o espetáculo lembra, em algumas passagens, o similar que marcou época pelo seu conteúdo revolucionário: “Hair”, que chacoalhou o status quo norte-americano na década de 60, em oposição à Guerra do Vietnã.
Mas a “revolução” de “Noturno” não é tanto de ordem política ou estrutural; é iminentemente pessoal, interior, de dentro para fora.
Quanto à montagem, de volta ao cartaz no Teatro Dias Gomes, mantém muito da concepção original. Não há, como nos últimos musicais que vêm sendo apresentados nos palcos brasileiros, aquele virtuosismo técnico ou mesmo exarcebação estética.
Pelo despojamento das cenas e pela exploração dos espaços além-palco, “Noturno” se assemelha a um trabalho circense, onde a performance física dos atores é exigida a todo instante.
LEITURA
Os quadros não seguem, aparentemente, uma narrativa uniforme. São músicas/histórias independentes, em que a leitura se dá mais pela interpretação vocal e pela movimentação coreográfica – esta muitas vezes “poluída” e ainda presa a uma marcação mecânica.
Quando se deixa levar pela dramatização, sempre recorrendo à comédia aberta, como em “Surfistas de Cristo”, o resultado é regular.
Falta um processo mais profundo nas atuações. Sobra caricatura gratuita, porém cara à hegemonia do projeto. A Oficina dos Menestréis, comandada por Deto Montenegro (irmão) e Candé Brandão, explora nos cursos de ator o reflexo, a percepção e a intuição.
No palco, em nome do que pode ser uma valorização obsessiva do gesto e do movimento, dá a impressão de que “malhar” importa mais do que “atuar”, quando deveria ser o contrário.
“Noturno” se sustenta mesmo pela música. Maior evidência disto é o lançamento do CD com as 19 canções do espetáculo, com letras de Oswaldo Montenegro, Peter Gabriel, U2 e Prince (ops, ex), entre outros.
As interpretações de Tania Maya, Estela Cassilatti, Débora Reis, Eduardo Costa e Marcelo Palma traduzem na voz o espírito libertador proposto pelos autores. Em especial o trio feminino arrebatador – Tania Maya, ressalta-se, é a Enya brasileira, com toda a sua peculiaridade preservada, como se viu em recente participação no show do “padrinho” Oswaldo Montenegro.
Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com grupo Oficina dos Menestréis. Segunda a terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, próximo ao metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00. 75 minutos.