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Crítica

Religião, histeria e morte

4.11.2015  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Cristiano Prim

Em tempos em que o poder político anda contaminado pelo fanatismo religioso e um número cada vez maior de eleitores considera seus líderes religiosos capazes de legislar através da bíblia, é muito pertinente a montagem da Cia. La Vaca que, com o texto UZ, do dramaturgo uruguaio Gabriel Calderón, narra as desventuras de uma jovem senhora da pacata cidade de UZ, que se vê compelida a assassinar um dos filhos por ordem divina. Essa ordem, que vem através de uma tonitruante voz em off, legitima seu poder pela ciência dos fatos da vida da mulher, e implacável, exige o assassinato sob a ameaça de destruições sobrenaturais de grandes proporções.

O embate moral entre a legitimidade do assassínio perante o poder divino e a potência desse poder como superior ao amor filial e à legalidade dá o mote para uma série de situações burlescas, absurdas, cômicas e violentas, envolvendo uma galeria de personagens cujos estereótipos são reconhecíveis em nosso cotidiano repleto de exemplos de pessoas que colocam suas convicções religiosas acima do bem social, de suas famílias e da própria saúde física, financeira e mental.

Personagens como o padre homossexual ou a beata lasciva talvez caiam em estereótipos fáceis demais, mas contribuem para o tom burlesco

Impelida pela Voz a escolher um dos filhos para assassinar, e sem poder revelar seus intuitos homicidas a ninguém, a mulher ocasiona, em uma espécie de comédia de erros, uma série de mal entendidos que afetam toda a cidade de UZ. As situações e o modo como os atores se apropriam delas beiram o nonsense, a comédia pastelão e a farsa irresponsável. O exagero e o ridículo, incontidos mesmo em momentos mais reflexivos da montagem, remetem de maneira cômica às incongruências perpetradas por aqueles que arrotam santidade enquanto dilapidam o patrimônio alheio, e àqueles que se deixam levar como rebanho pelos que se autodenominam representantes de Deus.

Personagens como o padre homossexual ou a beata lasciva (Malcon Bauer e Elianne Carpes) talvez caiam em estereótipos fáceis demais, exagerados demais, mas contribuem para o tom burlesco em que a religiosidade é colocada. O marido (WMarcão), e sua obsessão insana por recuperar o amor da mulher, beira o inverossímil e o grotesco. A estranheza mórbida da filha do açougueiro (Thaís Putti) e a sanguinolenta fúria de seu pai (Alvaro Guarnieri) costuram as interações cômicas provocadas pelos jogos de enganos e mal-entendidos da trama. Os filhos (Rafael Orsi e Lara Matos), e sua vulnerabilidade perante as intenções da mãe, são o eixo que conecta os elementos em uma engrenagem desigual.

Atores da catarinense Cia. La VacaCristiano Prim

Atores da catarinense Cia. La Vaca

Grace, a mãe, tal como na história bíblica em que Abraão acatou ordens divinas para matar seu filho Isaac,  não possui argumentos para evitar a ingrata tarefa, e tenta inadvertidamente encontrar o melhor meio de cumprir com seu desígnio. Do comedimento de mãe de família à histeria dos cooptados pelo êxtase religioso, Milena Moraes desenha os contornos dessa mulher transtornada entre o fervor religioso, a violência premeditada e a condescendência materna.

A divisão em capítulos com uso de projeções de texto e a escassez de recursos cenográficos em prol da ação descentralizada e com vários ápices de conflitos e reviravoltas, dão certa agilidade às quase duas horas de encenação, embora o excesso de recursos cômicos de efeito duvidoso desnorteie um pouco o espectador, tornando um tanto quanto cansativa a experiência de conviver com os habitantes de UZ e seus dilemas sobrenaturais. A costura dramática que une os personagens nessa urdidura repleta de rasgos quase psicodélicos estabelece um tecido cômico passível de esgarçar na duração, mas que resiste em meio à qualidade do jogo entre os atores. Não se pode dizer que UZ, na montagem de Renato Turnes, seja um espetáculo “divino”, mas também não se pode negar o resultado bem-aventurado em uma época em que as religiosidades perpetram violências dignas das barbáries bíblicas.

.:. O trabalho da Cia. La Vaca foi apresentado recentemente na 22ª edição do Festival Isnard Azevedo (17 a 25/10), em Florianópolis. Publicado originalmente no jornal Notícias do Dia, caderno Plural, p. 4, em 28/10/2015.

Ficha técnica:
De Gabriel Calderón
Tradução: Esteban Campanela
Direção: Renato Turnes
Com: Alvaro Guarnieri, Elianne Carpes, Rafael Orsi, Lara Matos, Malcon Bauer, Milena Moraes, Thaís Putti e WMarcão
Desenho de luz: Daniel Olivetto
Cenografia: Sandro Clemes
Figurino: Karin Serafin
Maquiagem: Robson Vieira
Trilha sonora: Ledgroove
Arte gráfica: Camila Petersen
Produção: Milena Moraes

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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