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Crítica Militante

O movimento das águas em Albert Camus

14.9.2016  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Adrina Marchiori

Como uma peça pouco encenada de Albert Camus (1913-1960), que uma estudiosa chegou a classificar em 1961 como um “relativo fracasso”[1] de público, tornou-se um dos espetáculos mais instigantes da cena gaúcha? Recuperando uma joia da dramaturgia, a versão de O mal-entendido levada ao palco pelo diretor Daniel Colin sintetiza uma proposta estética do tipo que usualmente é apresentada por companhias com trabalho continuado.

Essa equipe, entretanto, foi congregada para a montagem do presente trabalho, que terá novas sessões nos dias 14 e 15 de setembro, na Sala Álvaro Moreyra, dentro da programação do 23º Porto Alegre Em Cena. Concorrerá ao Prêmio Braskem Em Cena, entregue aos espetáculos gaúchos da grade, depois de ter amealhado quatro Prêmios Açorianos de 2015, principal láurea da cena porto-alegrense, nas categorias de melhor atriz (Gabriela Greco), atriz coadjuvante (Carla Cassapo), iluminação (Carlos Azevedo) e figurino (Antonio Rabadan). Completam o elenco Elison Couto, Fernanda Petit e Pedro Nambuco.

A crença no trabalho manual árduo de construção da cena – que no cinema poderia ser facilmente simulada com auxílio da computação gráfica – é o que há de mais tocante nesse trabalho

Apresentada pela primeira vez em 1944, à sombra da II Guerra Mundial, O mal-entendido coloca em cena Jan (Elison Couto), um homem bem-sucedido financeiramente que decide rever a mãe (Gabriela Greco) e a irmã, Martha (Fernanda Petit), depois de trinta anos afastado. Elas administram um sinistro albergue – onde também trabalha um silencioso criado (Pedro Nambuco) – e costumam assassinar seus hóspedes para se apossar do dinheiro em nome do sonho de uma vida melhor perto do mar. Jan hospeda-se no albergue sem se identificar e não é reconhecido pela mãe nem pela irmã.

Marie (Carla Cassapo), a esposa de Jan, é a única a suspeitar que o comportamento dele possa ser a desmedida que levará ao mal-entendido aludido no título. O desfecho é macabro, digno de uma tragédia grega, e não é segredo que este gênero foi um dos modelos de Camus. Mas, no entendimento de estudiosos como Virtanen[2] e Matherne[3], o personagem trágico de O mal-entendido não é Jan, e sim Martha. Como lembra Matherne, é a irmã quem diz: “O que eu tenho de humano não é o que eu tenho de melhor. O que eu tenho de melhor é o que eu desejo. Eu creio que esmagaria qualquer coisa que estivesse no meu caminho e me atrapalhasse”.[4]

A montagem gaúcha dirigida por Colin ambienta a ação no formato semiarena, com a plateia distribuída em três dos quatro lados do palco, recurso que integra o público na cena. A estratégia reforça um caráter vivencial da encenação, coerente com um dos aspectos atuais da peça: sua capacidade de provocar suspense no sentido mais cinematográfico do termo. O teatro vira experiência. Tudo em cena contribui para esse efeito, da maquiagem das atrizes que interpretam a mãe e a irmã, incluindo lentes de contato especiais, à iluminação baixa, com cores frias, passando pelo figurino. Mesmo Jan, o mais solar dos personagens, parece assombrado o tempo todo por uma nuvem plúmbea que anuncia seu destino.

Gabriela Greco e Pedro Nambuco: ainda é possível ousar no teatro dramáticoAdriana Marchiori

Gabriela Greco e Pedro Nambuco: ainda é possível ousar no teatro dramático

Na inventiva cenografia que é – por assim dizer – uma personagem à parte, a ação ocorre toda sobre uma espécie de piscina. Ela passa despercebida pelo público, inicialmente. Parece apenas uma plataforma para o atores, até que começa a ser discretamente preenchida com água no momento em que a curva dramática se aproxima do ápice. A piscina materializa a represa onde ocorrem os acontecimentos trágicos da trama, e é notável como os atores se valem dos mais diferentes recursos propiciados por esse elemento.

No solilóquio de Martha, já no segmento final, os demais atores jogam água sobre a atriz Fernanda Petit, criando um efeito de onda que confere à imagem um poder insuspeitado, sublinhado pela iluminação baixa. Quem senta perto da cena pode até sentir certo frio, que não é possível saber se vem do movimento das águas ou da pura imaginação, estimulada pela visão dos atores encharcados.

Uma das características que tornam O mal-entendido um espetáculo tão singular é a ideia de que o artesanato envolvido no teatro não é um elemento limitador, mas expansivo. Mesmo inserida em uma perspectiva notadamente textocêntrica, a montagem explora novas teatralidades. Tal confiança na capacidade de surpreender com a simplicidade é possivelmente uma lição do Théâtre du Soleil, que foi visto pelo público gaúcho em duas ocasiões na programação do Porto Alegre Em Cena.

Sim, ainda é possível ousar no teatro dramático. A crença no trabalho manual árduo de construção da cena – que no cinema poderia ser facilmente simulada com auxílio da computação gráfica – é o que há de mais tocante nesse trabalho.

Fernanda Petit é a irmã montagem da peça de Albert CamusZé Renato Insights

Fernanda Petit é a irmã da peça do franco-argelino Albert Camus

Desde sua primeira representação, muito se fala do pessimismo do texto de O mal-entendido. Em contraste com a vertente mais irônica do teatro do absurdo – aquela de Beckett, Ionesco e Arrabal –, o absurdo de Camus parece-nos, hoje, cifrado e distante. O que significa a enigmática cena final em que Marie pede a ajuda do misterioso criado, o qual recusa com um sonoro “não”? Acima de tudo, esse pessimismo parece incoerente com a promessa pós-moderna de uma sociedade em rede na qual supostamente nunca estamos sozinhos.

Mas a experiência do espetáculo sairá prejudicada se nos atermos unicamente a uma arqueologia da intenção de Camus. Mesmo porque a teoria nos ensinou a desconfiar da intenção dos autores, por melhor que seja. Para Matherne, uma leitura da peça focada nos elementos absurdos pode levar a um entendimento pessimista que é enganador ao desconsiderar a potência afirmativa que o texto evoca. Essa autora sugere uma leitura baseada na estrutura grega da peça: “O núcleo da estética de Camus reside no conceito de que a arte, ao mesmo tempo, afirma e rejeita o mundo. […] Apenas na arte o homem pode agir como se estivesse criando o próprio destino”.[5]

Camus está na seleta categoria de pensadores que acreditam no teatro e na literatura como veículos para sua expressão. Vale-se daquilo que a tradição filosófica sempre rejeitou: o poder da metáfora. Não é à toa que ele se considerava mais artista do que filósofo. “Penso segundo as palavras, e não segundo as ideias”, escreveu.

Para Camus, somos todos como Sísifo, carregando a pedra da nossa existência morro acima apenas para constatar, ao chegar no topo, que a pedra rolará abaixo, e nosso trabalho recomeçará. Como lembra Matherne, a diferença é como cada um responde a essa situação. Martha e a mãe buscam uma saída desesperada, que não encontra barreira ética, levando-as à desmedida. É possível entender, assim, seus destinos na peça.

O desfecho que cabe a Jan é difícil de aceitar porque nos parece o mais injusto. Mas não devemos esperar de Camus um julgamento moral. Reck observa que “o interesse de Camus nas motivações psicológicas dos personagens é assumidamente limitado”.[6] Em um estudo referencial, Behrens[7] entende cada uma das cinco figuras de O mal-entendido como a corporificação de um aspecto do pensamento do escritor. Behrens os chama de “personagem-ideias”. Maria, a esposa de Jan, é aquela que parece ter a visão mais usual da vida, mantendo a esperança até o fim. O criado tem completa indiferença perante a vida dos outros personagens e seria o mais próximo de Deus na visão de Camus, caso este acreditasse em uma entidade desse tipo.

Jan, segundo Behrens, é o exemplo de homem revoltado (para citar um importante livro de Camus), que deixou para trás a família com o objetivo de buscar a felicidade. Tanto a mãe quanto a irmã também tentam ser rebeldes, mas a mãe é uma sentimental que colabora com os assassinatos para ajudar a filha; esta, a mais fria personagem da peça, é uma verdadeira revoltada, que busca a liberdade de sua vida miserável a qualquer custo.

A água é elemento-chave do espaço cênico em 'O mal-entendido'Zé Renato Insights

A água é elemento-chave do espaço cênico em ‘O mal-entendido’

Camus despreza qualquer esperança religiosa em uma vida póstuma, mas O mal-entendido traz outra forma de esperança por trás de sua mensagem enganosamente pessimista. Por mais absurda que seja a vida que experimentamos, é no aqui e agora que devemos depositar nossa expectativa. Para o escritor, a morte não dá acesso a uma nova vida; pelo contrário, é uma “porta fechada”, em suas palavras. Por isso, a vida deve ser intensa.

“O mundo é belo, e fora dele não há salvação”, escreveu Camus, que sabiamente jamais respondeu à pergunta fundamental da filosofia: qual o sentido da existência? A ausência de respostas é o que ele chama de absurdo. Mas para ele o único problema filosófico verdadeiramente sério é outro: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é o que temos a fazer. Isso os personagens de O mal-entendido exercitam a todo momento, chegando a diferentes conclusões. Além de absurda, a existência também é mistério.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Referências:

[1] RECK, Rima Drell. The theater of Albert Camus. Modern Drama, v.4, n.1, 1961. Afirma a autora: “As peças mais bem-sucedidas de Camus foram Caligula e Les justes, as quais, embora muito diferentes na apresentação, compartilham um tema em comum. O motivo do relativo fracasso de Le malentendu é assunto para especulação; é a mais bem costurada e clássica das peças” (p. 44). As traduções dos textos em inglês aqui citados são minhas.

[2] VIRTANEN, Reino. Camus’ Le malentendu and some analogues. Comparative Literature, v.10, n.3, 1958.

[3] MATHERNE, Beverly M. Hope in Camus’ “The misunderstanding”. Western Speech, v.35, n.2, 1971.

[4] CAMUS, Albert. O mal-entendido. Tradução de Aline Sokolovsky e Caio Amon. A versão empregada na montagem aqui analisada foi gentilmente cedida pelo grupo para este estudo.

[5] Matherne, 1971, p. 75.

[6] Reck, op. cit., p. 43.

[7] BEHRENS, Ralph. Existential “character-ideas” in Camus’ The misunderstanding. Modern Drama, v.7, n.2, 1964.

Serviço:
O mal-entendido
Onde: Sala Álvaro Moreyra (Avenida Erico Verissimo, 307, Azenha, Porto Alegre, tel. 51 3289-8066)
Quando: quarta e quinta-feira, 14 e 15/9, às 19h
Quanto: R$ 30
Duração: 60 min.
Classificação: 16 anos
Leia mais informações sobre o Porto Alegre em Cena

Ficha técnica:
Autoria: Albert Camus
Direção: Daniel Colin
Tradução: Aline Sokolovsky e Caio Amon
Adaptação: o grupo
Com: Carla Cassapo, Elison Couto, Fernanda Petit, Gabriela Greco e Pedro Nambuco
Cenografia: Marco Alexandre Fronckowiak e Rodrigo Souto Lopes
Figurino: Antonio Rabadan
Maquiagem e cabelos: Elison Couto
Concepção e operação de luz: Carlos Azevedo
Trilha sonora e operação de som: Beto Chedid
Produção: Fernanda Petit
Assistência de produção: Gustavo Susin e Gabriel Rocha
Contrarregragem: Gabriel Rocha

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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