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Crítica Militante

A política da forma do Magiluth

19.10.2016  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Brayan Martins/PMPA

Em sua frase mais célebre, o crítico irlandês Vivian Mercier definiu Esperando Godot, de Beckett, como “uma peça em que nada acontece, duas vezes”, em referência aos dois atos do roteiro. Já O ano em que sonhamos perigosamente, que o grupo pernambucano Magiluth apresentou em setembro último no 23º Porto Alegre Em Cena, é um espetáculo no qual muitas coisas acontecem, mas não sabemos exatamente o quê.

Uma hipótese é que esse inventivo coletivo surgido há 12 anos no Recife está falando em cena o tempo todo sobre teatro. A metáfora fica clara no segmento final, quando um personagem elabora:

Essa coisa que eu fiz dizem que vem dos gregos. É tipo… uma coisa. Tem beleza. É uma coisa que uma pessoa ou um grupo de pessoas fazem para outra pessoa ou para outro grupo de pessoas. Pode ser algo planejado ou algo inventado na hora. Essa coisa que você faz para o outro tem que ser algo com o objetivo de apresentar uma situação e despertar sentimentos e reflexões. Dizem que vem dos gregos. Ah, essa coisa também pode ser o lugar onde se desenvolve isso. Esse tipo de coisa com beleza.

Mas seria pobreza de espírito tentar fixar um sentido unívoco para esta montagem que, na melhor tradição desconstrutiva, procura questionar certezas e não oferecer nada pronto. De fato, algo maior do que o teatro parece flanar nos interstícios de significado que aventam no espetáculo: esse algo é a ideia de construção de uma obra, de um legado que possa alterar a ordem das coisas, quem sabe causar alguma transformação ou, colocando de um jeito mais emotivo, mudar o mundo.

Filosofia e política transpiram nos corpos dos atores do MagiluthBrayan Martins/PMPA

Filosofia e política transpiram nos corpos dos atores do Magiluth

O ano em que sonhamos… integra um movimento não coordenado mas orgânico, na cena brasileira, de um retorno ao teatro político, inspirado pela inquietação nas ruas que começou em junho de 2013 e, de alguma forma, segue em ebulição. Esse retorno não tem a ver com um saudosismo do teatro engajado praticado nos tempos da ditadura militar, no qual a ousadia estava no conteúdo – no texto, nos diálogos, nos personagens.

A política do grupo Magiluth, em seu oitavo trabalho, é de outra natureza. Faz justiça à frase de Lukács citada por Hans-Thies Lehmann: “O que é verdadeiramente social na arte é a forma”. Para Lehmann [1], em depoimento de 2003, não nos falta informação sobre política: ela está nos jornais, na televisão e no rádio. Hoje, a constatação é ainda mais evidente. Em tempos de redes sociais, há um excesso de informação. Alguém definiu esta como uma era da “pós-verdade”, na qual a verdade perdeu a relevância. As pessoas se interessam por rumores que confirmem suas pré-concepções.

Mesmo sem ter a intenção, o grupo do Recife pratica o teatro pós-dramático com a potencialidade crítica que Lehmann imaginou. ‘O ano em que sonhamos perigosamente’ é uma ode a uma geração que não está à venda

Notícias e boatos se misturam, mas não faltam narrativas. O que o teatro pode fazer de diferente é atuar na forma. “Portanto”, argumenta Lehmann, “a questão do teatro ser político para mim não é simplesmente tratar de temas e tratar de um conteúdo político mas é ter essa forma política. Você pode ter teatros que não são nada políticos e tratem de temas políticos. É a forma que vai definir”.

Essa, em resumo, é a força de O ano em que sonhamos…: a política está na forma, que, no caso desta montagem, tem entre suas motivações a filosofia pós-estruturalista de Deleuze e Guattari. Embora possa se ouvir em cena alguma referência à categoria de “rizoma”, é difícil localizar no texto qualquer citação explícita aos pensadores. O mesmo pode ser dito da alusão ao filósofo esloveno Slavoj Žižek, de quem o Magiluth tomou emprestado o título do espetáculo – o mesmo de um livro no qual Žižek escreve sobre as revoluções de 2011 no mundo.

É porque a filosofia – e, portanto, a política – está, muitas vezes, nos corpos dos atores. Uma presença, mais do que uma representação. São eles Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral. Vestidos com roupas esportivas, recebem o público já com um treino em andamento. Nunca sabemos exatamente seu objetivo, essa é a parte da construção que cabe ao público. Mesmo depois que o espetáculo começa propriamente, eles seguem “treinando”: realizando movimentos, dizendo textos, interagindo uns com os outros, colocando músicas para tocar em seus dispositivos conectados a caixas de som. Quando o espetáculo vai começar? Talvez já tenha começado há muito tempo.

Assim, sem mais, vem uma palavra de ordem: “Tchekhov! Tchekhov!” Então, eles se colocam a encenar trechos de algumas das mais famosas peças do dramaturgo russo. Os textos, que revolucionaram o drama mundial na virada do século 19 para o 20, ganham estranha atualidade relidos à luz da realidade brasileira dos últimos anos. O diálogo entre Nina e Trepliov, de A gaivota, trata da posição do artista, essa figura malbaratada por certo segmento da sociedade ultimamente; as falas retiradas de O jardim das cerejeiras parecem uma metáfora da especulação imobiliária que encontrou reação no movimento Ocupe Estelita, no Recife; enquanto Olga, de As três irmãs, reflete sobre o legado que deixamos para os que vêm depois de nós, assim como fazemos nesta era tenebrosa que parece andar em direção ao passado.

Erivaldo de Oliveira em sessão do Poa Em CenaBrayan Martins/PMPA

Erivaldo Oliveira no Poa Em Cena

Por sua surpreendente popularização mundial, o conceito de pós-dramático ganhou um entendimento enviesado, como se demarcasse qualquer iniciativa que renegue o texto, abrace uma performatividade festiva e propugne a implosão dos significados. Mesmo sem ter a intenção, o Magiluth pratica o teatro pós-dramático com a potencialidade crítica que Lehmann imaginou: um diálogo com a tradição que busca novo lugar para o texto, uma prática que desafia as fronteiras entre teatro e performance e, não menos importante, um processo que contraria a lógica de um mundo no qual tudo vira mercadoria, inclusive a arte. O ano em que sonhamos…é uma ode a uma geração que não está à venda.

Doze anos depois da publicação do livro O teatro pós-dramático, Lehmann escreveu um artigo [2] no qual lista algumas tendências do teatro, notadamente na Alemanha, desde então. Um desses aspectos é uma mudança de ênfase do gênio individual para um trabalho colaborativo, mesmo que não necessariamente coletivo. Outro impulso é o de reabrir um diálogo entre o teatro e a sociedade por meio de questões políticas e sociais, em reação a episódios como o 11 de Setembro, as novas guerras, a ascensão de líderes de direita na Europa e a crise financeira – no Brasil, podemos acrescentar a popularização de um pensamento conservador e a crise nas finanças públicas.

Lehmann também aponta um interesse renovado na dança. Não se trata de um retorno à dança-teatro dos anos 1980, mas de uma “exploração pós-dramática de uma coreografia em todas as direções”. Em contraste ou em complementação com esse enfoque no corpo, está um novo lugar da fala na cena, com adaptações de textos não dramáticos, como épicos, romances e discursos teóricos. O Magiluth está atento às constantes mutações da cena contemporânea indicadas pelo crítico alemão, respondendo aos desafios com intrepidez. O ano em que sonhamos perigosamente deveria ser todos os anos.

[1] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático e teatro político. Sala Preta, São Paulo, v.3, 2003.

[2] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático, doze anos depois. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v.3, n.3, 2013.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Ficha técnica:
Direção: Pedro Wagner
Autoria: Giordano Castro e Pedro Wagner
Com: Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres (ou Pedro Wagner) e Mário Sergio Cabral
Preparação corporal: Flávia Pinheiro
Desenho de som: Leandro Oliván
Desenho de luz: Pedro Vilela
Direção de arte: Flávia Pinheiro
Design gráfico: Thiago Liberdade
Fotografia de divulgação: Renata Pires
Caixas de som: Emanuel Rangel, Jeffeson Mandu e Leandro Oliván
Técnico: Lucas Torres e Bruno Parmera
Realização: Grupo Magiluth

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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