O Diário de Mogi
11.11.1990 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de novembro de 1990. Local – Página 8
VALMIR SANTOS
O grupo Teatro Experimental Mogiano (TEM), um dos expoentes da arte cênica na história da cidade, está completando 25 anos de atividade. Para comemorar as bodas de prata, uma troupe de ex-atores que participaram da criação do TEM, em 1965, apresenta amanhã e terça-feira, às 20h30, no Teatro Municipal “Paschoal Carlos Magno” – com entrada franca – a peça “Ainda Tem,” retrospectiva das montagens do grupo até o início da década de 70.
Segundo Regina Lúcia Moreira Gomes, 42, e João Antônio Dias, 47, ex-atores que integram a equipe responsável pelo espetáculo, “Ainda Tem” marca o encontro de todo o elenco que atuou entre 1965 e 1972, um dos períodos mais férteis do grupo que ainda está em atividade (leia texto nesta página). “É a forma que encontramos para mostrar que o sonho, o ideal do teatro, ainda não acabou”, afirmam. “Nós, os mais velhos, passamos nossa experiência à geração que está aí e tem tudo para dar certo também”.
Hoje, boa parte dos ex-integrantes do TEM desenvolvem atividades em outras áreas. São advogados, professores, administradores, artistas plásticos, escritores, poetas. Alguns ainda moram em Mogi das Cruzes; outros se mudaram, mas não perderam contato com o grupo.
O embrião do TEM foi o Grêmio Estudantil Ubaldo Pereira (Geup) do Instituto Washington Luís, o pólo político-cultural-esportivo dos estudantes mogianos em meados da década de 60. Ali, percorreram o caminho das artes. Música, poesia e teatro eram o carro-chefe.
Semanalmente acontecia o show de auditório “Escola de Grupo”, ao vivo, onde apresentavam poemas, canções e esquetes teatrais.
A primeira apresentação do grupo aconteceu em agosto de 1965, com a leitura radiofônica da peça “Em Tempos de Inconfidência”, escrita por Milton Feliciano de Oliveira, no salão da antiga Rádio Marabá (hoje Rádio Diário de Mogi), que funcionava no prédio onde está localizado hoje o Cine Avenida.
“Em Tempos de inconfidência” antecedeu o espetáculo “Noite de Poesia e Bossa”, censurada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão do governo federal, devido à analogia política que fazia ‘ com a situação do País, no pós-golpe militar. Era dezembro de 1965. No mesmo mês acontecia outro espetáculo, “Tem Noite Feliz”, um auto de Natal.
Depois de alegres intervenções radiofônicas e dos lamentáveis dribles sobre a marcação cerrada da censura do governo Castelo Branco, finalmente o TEM subiu ao palco para apresentar a primeira montagem efetiva: “A Exceção e a Regra”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com direção de Armando Sérgio da Silva. Foi encenada no Liceu Braz Cubas, em agosto de 1966 (um ano depois da criação do grupo). Participando do 4º Festival do Teatro Amador do Estado de São Paulo, realizado naquele ano, a peça obteve prêmios de melhor espetáculo, direção, sonoplastia, maquilagem e iluminação.
No ano seguinte, 1967, foi a vez de “Canudos”, histórico brasileiro sobre a vida de António Conselheiro; em 1968, ‘Yerma”, do escritor espanhol Federico Garcia Lorca, e “Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não”, de Milton Feliciano (parte do elenco chegou a ser detida certa vez quando distribuía panfletos da peça, tida como “subversiva”); e, finalmente, “E a Sua Família Continua Unida?”, também escrita por Feliciano. Nesse período, realizaram ainda montagens infantis (“Pluft, o Fantasminha”, “A Bruxinha Que Era Boa”, “A Árvore Que Andava” c “Tio Platão”).
Ex-secretário de Cultura foi um dos idealizadores
Armando Sérgio da Silva, 44, ex-secretário municipal de Cultura, na gestão do prefeito António Carlos Machado Teixeira, foi um dos fundadores do TEM. Lembra com saudades das suas participações nos shows que aconteceram no “palquinho” do Instituto Washington Luís. Havia um quadro semelhante à “Escolinha do Professor Raimundo”, da Rede Globo, no qual, aos 14 anos, ele interpretava um dos alunos pentelhos da classe. Também foi um inveterado dublador das canções de Elvis Presley e do conjunto The Platters.
Na Rádio Marabá, Armando realizou vários esquetes. Os programas eram escritos por Antônio Benetazzo, desaparecido durante a ditadura (de acordo com Armando, sua ossada foi encontrada há poucos meses numa vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus). A locução ficava por conta de Sérgio Corrêa.
Segundo Armando, o TEM surgiu da necessidade de se fazer um teatro voltado para a pesquisa, desvinculado da prática convencional. Identifica o grupo com o movimento Oficina, emergente nos anos 60, pelo trabalho mais espontâneo, não levando tanto em consideração a apuração técnica e formação do ator, a exemplo do que acontecia no Teatro de Arena.
Armando Sérgio dirigiu “A Exceção e a Regra”, de Brecht, uma das peças mais premiadas do TEM. Permaneceu no grupo até 1967, quando foi estudar na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde atualmente leciona pós-graduação na disciplina Interpretação do Ator, tendo estrelas globais entre os alunos, como Irene Ravache e Regina Braga. Também dá aulas no curso de Comunicação Social da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC).
Na sua opinião, o movimento teatral em Mogi “sempre foi forte”. Cita, como exemplo, os 23 grupos que existiam na cidade durante sua gestão na Prefeitura (1982-1988). Armando, no entanto, se esquiva de avaliar a arte cênica mogiana na atualidade, alegando estar “afastado” das atividades locais em função das aulas na USP. Dos 23 grupos que citou, hoje, pelo menos 80% se dissolveram. (V.S.)
Diretora diz que montagem ignora nomes fundamentais
Na opinião da diretora do TEM, Clarice Jorge, 53, há 20 anos no grupo, o espetáculo preparado para homenagear os 25 anos deixou nomes importantes de fora. “Os ex-atores se detiveram apenas aos primeiros cinco anos do TEM e se esqueceram dos outros 20 anos”, disse. “Eles não foram leais e, para o homem, lealdade é fundamental, sob risco de se tornar tão somente um bicho a mais na natureza”.
Entre os integrantes que passaram pelo grupo, Clarice cita Mário e Marco Aurélio Namura, Paulo Fernandes, Levi Quintas Oliveira, Mário e Márcia Clacenko, Carlos Leonel Pastos, Aírton Durval da Mota, Marina Nogueira, Gina Muffo e José Miguel de Matos.
Clarice afirmou que foi convidada a participar da montagem de “Ainda Tem”, mas achou por bem não entrar na peça porque ainda atua no TEM. “Não sou ex”, disse. “Continuo no exercício da atividade teatral, o que na minha opinião é mais importante que comemorar os 25 anos”.
O TEM dos anos 90 se resume a seis atores. O grupo é presidido pelo escritor Nelson Albissú. Atualmente ensaiam “Os Cantores do Rádio”, de Albissú, cuja estréia está programada para janeiro do próximo ano — em dezembro serão feitas apresentações em creches e entidades carentes de Mogi, em caráter beneficente.
A diretora lembra/emocionada da peça “Ultima Estação”, também escrita por Albissú, que percorreu mais de 120 cidades entre 1985 e 1988. A montagem mais recente do grupo foi “O Aniversário de Mamãe Júlia”, do mesmo autor, realizada no ano passado. (V.S.)
Feliciano escreveu “Ainda Tem”, uma retrô das peças
Principal autor das peças montadas pelo TEM durante os primeiros seis anos de vida do grupo, o escritor e poeta Milton Feliciano de Oliveira, 47, preparou “Ainda Tem” para o reencontro dos amigos. “Nossa aventura teatral foi importante”, conta. “Retratamos um período em que Mogi teve uma forte resistência político-cultural e, por isso, não poderíamos deixar os 25 anos passarem em branco.”
Feliciano integrou o TEM de 1965 a 1971. Entre as principais montagens de sua autoria, estão “Tiradentes”, “Canudos”, “Aquele Que Diz Sim, Aquele Que Diz Não”, “E a Sua Família Continua Unida?” e “Leone e Lena”. Foi um dos idealizadores do show “Escola de Grupo”, no Instituto Washington Luís, a gênese do grupo.
Em “Tiradentes”, censurada pelo Dops, Feliciano fez um paralelo com o sufoco do regime militar vigente. “Através da história de Joaquim José da Silva Xavier, que curiosamente não se auto-intitulava doutor, tampouco era alienado, mostramos a batuta dos militares sobre nossas cabeças”, explica. Na oportunidade, ficou detido no Dops, em São Paulo, durante quatro horas tentando convencer “Dona Solange” – a mulher da tesoura – a liberar a peça. Nada conseguiu.
O escritor se afastou do TEM em 1971, quando se mudou para Porto Alegre (RS). Em 1977, voltou para Mogi com “Bandeirinha ou Boné, Cavalheiro?”, com o grupo Teatro Sérgio Corrêa. Foi uma passagem rápida. No ano de 1980 trouxe ao público mogiano “Amor (te) Natal”, uma versão diferente sobre a vida de Jesus Cristo. Esta peça também foi censurada em 1970 e liberada uma década depois.
Hoje, à frente da Distribuidora Porto Alegre, Milton Feliciano continua escrevendo. Na última quinta-feira lançou o livro “Olhei Minha Vida” – uma retro do seu fazer teatral. Em “Ainda Tem”, que será apresentado amanhã e terça no Municipal, traz fragmentos das peças que montou no grupo, além da leitura de poesias e trechos de músicas da época. “Teatro se comemora com teatro”, afirma. (V.S)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.