Folha de S.Paulo
9.2.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quarta-feira, 09 de fevereiro de 2005
TEATRO
Felipe Hirsch e Daniela Thomas assinam dois espetáculos em homenagem ao artista, “Avenida Dropsie” e “Sketchbook”
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Um edifício de dois andares e 7,7 metros ganha corpo no número 55 da avenida Dropsie, no palco do Teatro Popular do Sesi. Pelo espaço dessa via urbana fictícia transitarão cerca de 120 personagens, passageiros da obra do norte-americano Will Eisner (1917-2005), o mestre das histórias em quadrinhos.
Em nova parceria do diretor Felipe Hirsch com a cenógrafa Daniela Thomas, a Sutil Companhia de Teatro (de “Os Solitários” e “A Morte de um Caixeiro-Viajante”) homenageia o artista que sempre lhe serviu como referência (pensamento, tempo, espaço) e agora salta ao primeiro plano com duas peças de uma vez, “Avenida Dropsie” e “Sketchbook” -projeto que, segundo Hirsch, veio à luz antes da morte de Eisner, no mês passado, aos 87 anos.
“Avenida Dropsie” entra em cartaz no próximo dia 25 com a ambição de verter para o teatro as idéias que perpassam algumas das célebres “graphic novels”, romances gráficos do autor, como “Nova York: A Grande Cidade” (1987), “City People Notebook” (1989), “Pessoas Invisíveis” (1992) e “Avenida Dropsie – A Vizinhança” (1995), esta uma remissão ao endereço comum a várias de suas histórias.
Segundo Hirsch, não se trata de mera apropriação da linguagem dos quadrinhos em interpretação, cenografia, iluminação e demais elementos de cena.
“Apesar do humor, da ironia, é um Will Eisner mais dark, realista, preto-e-branco, ao contrário daquela visão mais romântica que a maioria das pessoas tem dele”, diz Hirsch, 32. “Não é uma obra pessimista. Sua base é otimista, mas traz constantemente uma doença, um tumor social, um questionamento.”
Oito atores interpretam pessoas comuns que habitam o centro urbano e costuram sentimentos de despedida, de solidão, de injustiça, enfim, obstáculos que, ainda assim, não demovem alguns de ir atrás dos possíveis “pequenos milagres” da vida.
“A gente sempre viu a obra do Eisner por meio desses olhos curitibanos, do universo gótico, nostálgico e melancólico. É a nossa referência do sul. Aprofundamos isso no espetáculo”, diz o ator Guilherme Weber, 30, um dos fundadores da Sutil, há 11 anos, e invariavelmente co-criador das montagens com Hirsch e a atriz Erica Migon. Também estão no elenco Magali Biff, Roney Facchini, Joelson Medeiros, Maureen Miranda, Leonardo Medeiros e Paulo Alves.
A palavra é âncora em vários momentos, quer na boca dos personagens, quer projetadas em um filó (tecido) à frente do palco, com os títulos de capítulos do roteiro montado por Hirsch ou mesmo reflexões de Eisner, um humanista da arte seqüencial.
As paredes do edifício cênico são transparentes. A luz dá vazão ao seu interior e ao painel de fundo, no qual Eisner desenhou sua Nova York natal.
Na concepção, “Avenida Dropsie” recua um tanto da narrativa de memória, recurso que pontuou os últimos trabalhos da Sutil. Aqui, predomina a ação no presente, ainda que a ferramenta da memória deixe as mãos de Hirsch e vá para as de Eisner, evocado em breves intervenções por meio de voz em off, provavelmente a do ator Gianfrancesco Guarnieri.
“Somos bastante fiéis ao Will Eisner, ao mesmo tempo em que fazemos nossa leitura. Lógico, existem os puristas dos quadrinhos, que são piores que os shakespeareanos, mas acho que eles ficarão felizes”, diz o diretor.
A versão mais autoral, por assim dizer, estará em “Sketchbook”, que estréia duas semanas depois no Popular do Sesi (10/3), com temporada às quartas e quintas-feiras.
Equipe e elenco repetidos, o espetáculo é como que um “lado B” de “Avenida Dropsie”, com esboços da montagem que entra em cartaz daqui a 16 dias.
De acento mais experimental, tal caderno de rascunho, “Sketchbook” trará cenas que não deram certo; cenas que deram certo demais, mas trilharam outros caminhos, e personagens que se recolocaram. “A minha idéia é trabalhar com uma lista de cenas e invertê-la a cada apresentação, entregá-la aos atores 15 minutos antes”, diz Hirsch, que tentará “”outras sensações emocionais” sem acabamento, sem tela, sem grafismo, luz reprogramada e por aí afora. Um pouco de raciocínio embaralhado.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.