Folha de S.Paulo
15.3.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 15 de março de 2005
TEATRO
Mostra de teatro começa com evocação aos laços culturais de Brasil e Japão em “Foi Carmen Miranda”
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Kazuo Ohno com Carmen Miranda dá samba ou dá butô? Os dois, sugere Antunes Filho. Ou de como a efusão desliza para a melancolia, e vice-versa, no curso da vida para a morte.
Antunes assina seu primeiro espetáculo francamente híbrido de teatro e dança, “Foi Carmen Miranda”, no qual celebra os 99 anos do dançarino japonês e lembra o cinqüentenário da morte da cantora luso-brasileira, ambos em 2005.
Vinte e cinco anos após conhecer a obra-homem Kazuo Ohno, num festival em Nancy, na França, e torná-lo referência obrigatória no seu trabalho de ator, Antunes concebe um projeto de evocação que pré-estréia amanhã na abertura para convidados da 14ª edição do Festival de Teatro de Curitiba (FTC) e voa em seguida para o Japão, onde participa de evento dedicado ao mestre Ohno.
“Eu gosto muito dessa brincadeira que fiz. É minha primeira tentativa. Vi muito balé na vida”, diz Antunes, 75, um admirador da dança contemporânea da alemã Pina Bausch. “Gosto muito do ritmo, do tempo, dos silêncios desta “Carmen”. Tem alguma coisa nova aí, só não sei ainda o quê.”
Quem assistiu a Juliana Galdino (“Medéia”) e Arieta Corrêa (“O Canto de Gregório”) em montagens recentes do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) vai deparar com as atrizes em marcações coreografadas, registros de quem convoca mais o corpo que a palavra. Às vezes, desponta o conhecido rigor de Antunes para a disposição de um coro em cena, explorando perpendicularidades.
O teatro antunesiano se retro-alimenta ainda do recurso do “fonemol”, como em “Nova Velha Estória” (1991). Trata-se de fala desconexa, inventa-língua que Galdino dispara num momento ou outro, masculinizada em terno, calça e chapéu brancos, como a figura do malandro de inspiração chapliniana, espera o encenador.
A densidade, o lirismo e as trevas do butô são expressadas sobretudo pela presença da bailarina e coreógrafa convidada Emilie Sugai, integrante da Cia. Tamanduá de Dança-Teatro, fundada em 1995 por Takao Kusuno (1945-2001), nome-chave na introdução no Brasil da dança gestada por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata (1928-1986) no Japão pós-guerra, nos anos 50.
“Como tenho ascendência japonesa, questionava-me se conseguiria alcançar o universo da Carmen Miranda, artista que pouco conhecia”, diz Sugai, 39. O desafio foi vencido aos poucos.
Completa o elenco a atriz Paula Arruda, recém-ingressada no CPT. Ela surge no início do espetáculo como a Carmen criança e aparece no fechamento brandindo a bandeira brasileira, cena que não incorre em nacionalismo, diz Antunes, antes reafirma os laços culturais entre Brasil e Japão.
“Não estou discutindo o que a Carmen fez ou deixou de fazer com os americanos, com Getúlio Vargas. Discuto o arquétipo do brasileiro vencedor fora das fronteiras”, diz o diretor, de ascendência portuguesa.
Símbolos cênicos
Mas há a apropriação de signos carmenianos, como o vestido prateado, as lantejoulas, os balangandãs, os sapatos plataforma, o turbante ornado com frutas tropicais (bananas à frente), o pandeiro, uma boneca, uma rosa vermelha, enfim, o “kitsch” espetacular do sucesso internacional do mito.
Fazia quase dez anos que Antunes não ia a Curitiba. Ele está na Mostra Oficial ao lado de artistas que influenciou profundamente, casos do ator Luís Melo, que criou na capital paranaense o seu Ateliê de Criação Teatral (ACT) e atua em “Daqui a 200 Anos”, de Anton Tchecov, e do diretor Sérgio Ferrara, que leva à capital paranaense “A Última Viagem de Borges”, estréia de Ignácio Loyola Brandão na dramaturgia.
Em meio ao baile de máscaras de “Foi Carmen Miranda”, Antunes e o CPT preparam ainda sua segunda tragédia grega, “Antígona”, de Sófocles, e mais um “Prêt-à-Porter”, o sétimo, ambos com estréia neste ano.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.