Folha de S.Paulo
14.4.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 14 de abril de 2005
TEATRO
Versão para o palco do livro de Marcio Souza questiona os valores brasileiros
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Encenador, pesquisador e professor da área de teatro na Unicamp, Marcio Aurelio anda no encalço da ignorância. Abraçou-a até o osso, com a Cia. Razões Inversas, em “Agreste” (2004), o premiado texto de Newton Moreno sobre um casal de lavradores que planta o desejo e o colhe por um par de décadas até a comunidade reduzir tudo a cinzas.
Agora, em paralelo (“Agreste” segue em cartaz no Aliança Francesa), Aurelio, 55, gira para o final do século 19, na região amazônica, de onde pesca a história do espanhol errante dom Luiz Galvez Rodrigues de Ária, o visionário protagonista de “Galvez, Imperador do Acre”, romance de estréia de Marcio Souza que ganha adaptação de mesmo nome em temporada a partir de amanhã no Centro Cultural São Paulo.
“É um espetáculo que questiona valores políticos, sociais, morais, religiosos, antropológicos etc. Mexe com uma idéia de formação de caráter. O público e o privado são expostos de maneira ácida e crítica, não há limites”, diz.
O livro do amazonense Souza, de 1976, o mesmo autor de “Mad Maria”, narra as peripécias de um aventureiro que aparece em Belém, trabalha num jornal, conchava com o cônsul da Bolívia e acaba revelando os planos de alguns homens de negócios dos EUA que desejavam ocupar um vasto e rico território ainda pouco conhecido, perdido entre as fronteiras de Brasil, Bolívia e Peru.
Com o escândalo, Galvez foge da cidade, embarca em um navio de missionários, comanda um exército de poetas e bêbados, ama mulheres fascinantes e finalmente é coroado Imperador do Acre, um reino tropical e efêmero.
A messiânica trajetória desse sujeito “invulnerável aos golpes do destino” (emboscadas, doenças, flechas e amores eclesiásticos) é interpretada por 17 atores da campineira Cia. Les Commediens Tropicales (de “Terror e Miséria no 3º Reich”, de Bertolt Brecht).
Uma das inspirações de Aurelio para a encenação é o filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha (1938-81). Daí uma certa “bagunça carnavalizada”, intermitente.
A voltagem erótica de algumas cenas logo é substituída pelo desencantamento, a percepção de que não há para quem torcer nessa arena. A disposição dialética dos temas, um roçar de realidade e ficção, ecoa a formação burguesa e política do Brasil que Souza busca retratar.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.