Folha de S.Paulo
9.5.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 19 de abril de 2005
TEATRO
Teatro XIX embarca amanhã para 28 apresentações com 85% do texto vertido para a língua de Moliére
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Referência européia nos estudos sobre histeria no século 19, o médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) costumava expor suas pacientes num teatro, diante de platéias formadas por estudantes, intelectuais e curiosos. É para aquele país que a peça brasileira “Hysteria” embarca amanhã.
O grupo paulistano Teatro XIX realiza turnê por oito cidades francesas com o espetáculo que estreou em novembro de 2001 -e o revelou quatro meses depois no Fringe, a mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba.
Na bagagem, as cinco atrizes e o diretor Luiz Fernando Marques levam 85% do texto vertido para a língua de Moliére. Foi o que mostraram na manhã da última sexta-feira durante um dos últimos ensaios antes da viagem.
Acompanhada de quatro amigas que estudam francês e foram convidadas pelo grupo, a professora Sandra Gualteri de Paula Silva assistiu à “Hysteria” pela primeira vez e saiu emocionada do encontro, à luz do dia, improvisado no terraço do prédio da escola Aliança Francesa, no centro.
“Antes do ensaio, uma colega que já havia visto me disse que a emoção talvez não fosse a mesma por causa do local, mas embarquei”, disse Silva, 53.
Ela se deixou levar pela personagem que senta ao seu lado durante toda a peça, interpretada por Sara Antunes. Trata-se de uma das cinco mulheres trancafiadas num hospício em nome da medicina da época, que via a histeria como uma questão patológica -“doença” que reafirmava preconceitos arraigados da sociedade para com a mulher.
A personagem apanha Silva pelas mãos, sussurra frases em seu ouvido, convida-a para rezar, de joelhos, até que confessa que está ali por ter matado o marido a machadadas. “Eu a perdoei porque ela não estava bem; era o que a personagem precisava naquele momento”, diz Silva.
O processo de identificação da platéia feminina é um dos trunfos de “Hysteria”. As mulheres são literalmente inseridas na roda, enquanto os homens ficam à margem, “passivos”.
“Durante a apresentação, a gente fica pensando sob tensão por causa dos relatos, mas, ao mesmo tempo, tudo acontece sem censura naquele ambiente repressor”, diz a pedagoga aposentada Cida Pereira, 63, que assistiu à peça pela quarta vez, agora em francês.
“Tenho mania de tentar traduzir a língua simultaneamente, o que poderia me deixar mais distante. Ao contrário, fiquei emocionada pela delicadeza do projeto”, diz a atriz Íris Yazbek, 25, espectadora de primeira viagem.
A assistente social Alaíde Theodoro, de 70 anos, que está no quinto estágio do francês, também já havia assistido ao espetáculo e diz que não encontrou dificuldades. “As atrizes conseguiram passar bem a emoção.”
Com exceção de Janaina Leite, que tem formação na língua, o elenco (Gisela Millás, Juliana Sanches e Evelyn Klein) começou a travar contato com o francês há pouco mais de dois anos.
Em 2003, o Teatro XIX fez apresentações em festivais de Cabo Verde, Portugal e da mesma França, para onde retorna.
Os cantos e alguns poemas e falas foram preservados em português, em nome da “música da língua”, por exemplo, quando as personagens entoam os versos: “Eu vou levar essas milongas/ Para o fundo do mar”.
A turnê percorrerá oito cidades, a começar por Arles, no sul do país. O grupo volta no dia 13 de junho e retoma em julho o seu segundo espetáculo, “Hygiene”, na Vila Operária Maria Zélia, no Belenzinho (zona leste de SP).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.