Folha de S.Paulo
8.9.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 2005
TEATRO
Newton Moreno dirige em São Paulo espetáculo que adaptou da obra do sociólogo, com a Cia. Os Fofos Encenam
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Apesar da voga populista no país, o dramaturgo Newton Moreno, 35, não se acanha com o povo. Essa gente que fala a mesma língua é fonte de histórias e tradições que se cruzam e firmam ascendência no corpo de suas peças.
Depois de “Agreste” (2004), o premiado texto no qual já evidenciava o movimento de volta às origens, a Zona da Mata de Pernambuco, o autor radicado há 14 anos em São Paulo evoca a cidade natal em “Assombrações do Recife Velho”, adaptação do livro homônimo do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987).
É o próprio Moreno quem dirige o espetáculo que estréia amanhã em São Paulo, com seu grupo Os Fofos Encenam. Ocupam um espaço não-convencional coerente com o obra de Freyre: o Casarão Belvedere, construído em 1927 no atual bairro da Bela Vista.
Não era por acaso que o Recife Antigo tinha uma rua chamada Encantamento. Em sua passagem pelo jornal “Província”, no final dos anos 1920, Freyre se interessou pela história de um homem que pedia ajuda para expulsar os fantasmas de sua casa. Eram comuns as queixas mal-assombradas na polícia, herança do Império que grassava na voz dos contadores. Daí a inspiração do sociólogo para ir a campo e escrever sobre as almas sebosas que atazanavam a vida dos moradores (o livro é de 1955). A montagem de Moreno transpõe a rua do Encantamento para o casarão e abre passagem para os causos curtidos na fricção com o sobrenatural. O espetáculo descarta a itinerância e põe dez atores diante de 25 espectadores por sessão.
São narrativas populares de personagens como o lobisomem, o papa-figo e o boca-de-ouro; ou situações como os gritos noturnos dos negros açoitados até a morte no Sítio da Capela; o tesouro escondido pela judia Branca Dias nos tempos da Inquisição e as súplicas dirigidas à cruz do patrão, onde foram fuzilados revolucionários e negros em fuga.
“Um morto que procura um vivo, um vivo que procura um morto: é assim que se passa o espetáculo nesse lugar encantado”, diz Moreno, que deseja o equilíbrio entre humor e mistério.
Nas entrelinhas das crendices recolhidas por Freyre, o dramaturgo se apropria de pelo menos duas veredas possíveis: as intermitentes consciências da morte e a cicatriz da escravidão.
Moreno adaptou “Assombrações…” em 2003, como projeto da Bolsa Vitae. Além do livro-fonte, foi a campo durante três meses para ver se encontrava resquícios dessas superstições. Afinal, a cidade não é só dos homens. Viu que Recife não é mais a mesma. Restam-lhe alguns casarões antigos, sim, mas mudou a luz. Não há mais “o silêncio morno da meia-noite”, como diz um personagem.
Contudo, resiste a oralidade que faz das assombrações um modo de ser do Recife. Moreno agregou novas histórias, por exemplo, conversando com uma nora de Freyre. O intelectual não está representado em cena. Ele surge fragmentado em muitos personagens, entre eles um entrevistador. É como se um espectro a mais rondasse o casarão.
Parte dos integrantes da Cia. Os Fofos Encenam é embrionária da Unicamp. O grupo atua profissionalmente desde 2000. “Assombrações…” é sua terceira peça e foi contemplada em 2004 pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.
A ocupação do Casarão Belvedere, até outubro, prevê temporada das outras duas peças do repertório: “Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada” (2000) e “A Mulher do Trem” (2003).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.