Menu

Folha de S.Paulo

Galpão disseca toma-lá-dá-cá com Brecht

24.10.2005  |  por Valmir Santos

São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2005

TEATRO 
Paulo José dirige segundo espetáculo consecutivo do grupo mineiro; nas entrelinhas, há referências a Lula e Bush

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local 

Publicações dedicadas ao teatro contemporâneo ganharam novas edições no fim de 2005 e neste começo de ano no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte.
Iniciativa do grupo carioca Teatro do Pequeno Gesto, a revista “Folhetim” nº 22 é dedicada ao projeto “Convite à Politika!”, organizado ao longo do ano passado. Entre os ensaios, está “Teatro e Identidade Coletiva; Teatro e Interculturalidade”, do francês Jean-Jacques Alcandre. Trata da importância dessa arte tanto no processo histórico de formação dos Estados nacionais quanto no interior de grupos sociais que põem à prova sua capacidade de convivência e mestiçagem.
Na seção de entrevista, “Folhetim” destaca o diretor baiano Marcio Meirelles, do Bando de Teatro Olodum e do Teatro Vila Velha, em Salvador.
O grupo paulistano Folias d’Arte circula o sétimo “Caderno do Folias”. Dedica cerca de 75% de suas páginas ao debate “Política Cultural & Cultura Política”, realizado em maio passado no galpão-sede em Santa Cecília.
Participaram do encontro a pesquisadora Iná Camargo Costa (USP), os diretores Luís Carlos Moreira (Engenho Teatral) e Roberto Lage (Ágora) e o ator e palhaço Hugo Possolo (Parlapatões). A mediação do dramaturgo Reinaldo Maia e da atriz Renata Zhaneta, ambos do Folias.
Em meados de dezembro, na seqüência do 2º Redemoinho (Rede Brasileira de Espaços de Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral), o centro cultural Galpão Cine Horto, braço do grupo Galpão em Belo Horizonte, lançou a segunda edição da sua revista de teatro, “Subtexto”.
A publicação reúne textos sobre o processo de criação de três espetáculos: “Antígona”, que o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) estreou em maio no Sesc Anchieta; “Um Homem É um Homem”, encenação de Paulo José para o próprio Galpão, que estreou em outubro na capital mineira; e “BR3”, do grupo Teatro da Vertigem, cuja previsão de estréia é em fevereiro.
Essas publicações, somadas a outras como “Sala Preta” (ECA-USP), “Camarim” (Cooperativa Paulista de Teatro”) e “O Sarrafo” (projeto coletivo de 16 grupos de São Paulo) funcionam como plataformas de reflexão e documentação sobre sua época.
Todas vêm à luz com muito custo, daí a periodicidade bamba. Custo não só material, diga-se, mas de esforço de alguns de seus fazedores em fomentar o exercício crítico, a maturação das idéias e a conseqüente conversão para o papel -uma trajetória de fôlego que chama o público para o antes e o depois do que vê em cena.
Folhetim nº 22
Quanto: R$ 10 a R$ 12 (114 págs)
Mais informações: Teatro do Pequeno Gesto (tel. 0/xx/21/2205-0671; www.pequenogesto.com.br)
Caderno do Folias
Quanto: R$ 10 (66 págs)
Mais informações: Galpão do Folias (tel. 0/xx/11/3361-2223; www.galpaodofolias.com)
Subtexto
Quanto: grátis (94 págs; pedidos por e-mail: cinehorto@grupogalpao.com.br)
Mais informações: Galpão Cine Horto (tel. 0/xx/31/3481-5580; www.grupogalpao.com.br)

E agora, José?

Paulo José responde em companhia de Bertolt Brecht e Galpão. Esse homem de 68 anos fala com rara propriedade da obra e biografia do dramaturgo alemão que pontuou vários momentos de sua carreira.

Segunda encenação consecutiva com o grupo mineiro, depois de “O Inspetor Geral” (2003), do russo Gogol, “Um Homem É Um Homem” vem instaurar pertinente reflexão sobre a falta de ética (pública e privada) e a fixação bélica no bangue-bangue que virou a vida contemporânea no Brasil e no mundo.

O espetáculo estreou na semana passada, em Belo Horizonte. Narra a desconstrução da personalidade do estivador Galy Gay, um sujeito simples, incitado a se passar por outro, um soldado do grupo de metralhadoras de um exército estrangeiro que invade seu país. A peça disseca a condição humana, a tentação do chamado toma-lá-dá-cá.

Publicada em 1927, se passa originalmente num acampamento militar de tropas britânicas na Índia. À época, o Ocidente já tergiversava sobre a “guerra pacificadora”, ou a “guerra preventiva”, atualizada por George W. Bush.

O presidente norte-americano não está lá denominado, ainda que se ouçam acordes do hino daquele país que hoje ocupa o Iraque. Tampouco é difícil não associar o desmonte de Galy Gay (interpretado por Antonio Edson) à crise que acomete o presidente brasileiro e o PT.

“A falha trágica do Lula é que ele quis ser presidente a qualquer preço. Vendeu a alma ao diabo”, diz José.

O viés político é subtexto. Não se politiza a cena para dizer a que veio, recurso que, segundo o diretor, gera muita incompreensão em torno de Brecht.

“Um Homem É um Homem” desliza para o escaninho da comédia, mas sabe-se que, em se tratando do autor alemão, nem tudo é o que parece. Há cenas dramáticas, líricas, musicais de cabaré e sobretudo cenas épicas, com a figura do narrador.

“Não é uma peça que se explique facilmente. É que foi escrita por um poeta. Brecht não se segura nos limites convenientes do drama. Ele se espraia”, diz José.

E o Galpão apresenta o espetáculo num circo que ergueu no quintal de um palacete imperial de 1896, picadeiro-barricada em meio a lonas envelhecidas. É como se o grupo voltasse à cena de origem com pernas-de-pau à la “A Alma Boa de Setsuan”, um Brecht levado à rua 23 anos atrás fruto de oficina com atores alemães, o berço da companhia.

Aninhado por Brecht e pelo coletivo Galpão, José agora é.



O jornalista 
Valmir Santos viajou a convite do grupo Galpão.

Um Homem É um Homem 
Quando:
 qui. a dom., às 20h; até 6/11
Onde: Casa do Conde de Santa Marinha (r. Januária, 130, Floresta, Belo Horizonte, tel. 0/xx/ 31/3273-6666)
Quanto: de R$ 10 a R$ 20

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados