Folha de S.Paulo
24.10.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2005
TEATRO
Paulo José dirige segundo espetáculo consecutivo do grupo mineiro; nas entrelinhas, há referências a Lula e Bush
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
E agora, José?
Paulo José responde em companhia de Bertolt Brecht e Galpão. Esse homem de 68 anos fala com rara propriedade da obra e biografia do dramaturgo alemão que pontuou vários momentos de sua carreira.
Segunda encenação consecutiva com o grupo mineiro, depois de “O Inspetor Geral” (2003), do russo Gogol, “Um Homem É Um Homem” vem instaurar pertinente reflexão sobre a falta de ética (pública e privada) e a fixação bélica no bangue-bangue que virou a vida contemporânea no Brasil e no mundo.
O espetáculo estreou na semana passada, em Belo Horizonte. Narra a desconstrução da personalidade do estivador Galy Gay, um sujeito simples, incitado a se passar por outro, um soldado do grupo de metralhadoras de um exército estrangeiro que invade seu país. A peça disseca a condição humana, a tentação do chamado toma-lá-dá-cá.
Publicada em 1927, se passa originalmente num acampamento militar de tropas britânicas na Índia. À época, o Ocidente já tergiversava sobre a “guerra pacificadora”, ou a “guerra preventiva”, atualizada por George W. Bush.
O presidente norte-americano não está lá denominado, ainda que se ouçam acordes do hino daquele país que hoje ocupa o Iraque. Tampouco é difícil não associar o desmonte de Galy Gay (interpretado por Antonio Edson) à crise que acomete o presidente brasileiro e o PT.
“A falha trágica do Lula é que ele quis ser presidente a qualquer preço. Vendeu a alma ao diabo”, diz José.
O viés político é subtexto. Não se politiza a cena para dizer a que veio, recurso que, segundo o diretor, gera muita incompreensão em torno de Brecht.
“Um Homem É um Homem” desliza para o escaninho da comédia, mas sabe-se que, em se tratando do autor alemão, nem tudo é o que parece. Há cenas dramáticas, líricas, musicais de cabaré e sobretudo cenas épicas, com a figura do narrador.
“Não é uma peça que se explique facilmente. É que foi escrita por um poeta. Brecht não se segura nos limites convenientes do drama. Ele se espraia”, diz José.
E o Galpão apresenta o espetáculo num circo que ergueu no quintal de um palacete imperial de 1896, picadeiro-barricada em meio a lonas envelhecidas. É como se o grupo voltasse à cena de origem com pernas-de-pau à la “A Alma Boa de Setsuan”, um Brecht levado à rua 23 anos atrás fruto de oficina com atores alemães, o berço da companhia.
Aninhado por Brecht e pelo coletivo Galpão, José agora é.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.