Folha de S.Paulo
10.11.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005
TEATRO
“As Turca”, de Andréa Bassitt, mostra três irmãs que brigam e demonstram afeto em meio às dificuldades financeiras
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
As três irmãs estão na cozinha. Fazem parte de uma família de ascendência árabe e cristã. Preparam a festa de 80 anos do tio Nagib. Em meio a tâmaras, damascos, tahine, coalhada fresca, homus, pão e as esfihas que assam, elas temperam o espetáculo com os dissabores da vida, sobretudo aqueles que passam pelo bolso.
Nura, a mais velha, Dulce e a caçula Vitória estão na pindaíba. As dívidas podem levar à perda da loja de tecidos. Essa curva de ascensão e queda da família, que passa pelas gerações das personagens, é a base do conflito do espetáculo “As Turca”, misto de comédia e drama que estréia hoje no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo.
O título da peça de Andréa Bassitt alude ao hábito da gente simples do interior, como as personagens, em flexionar o artigo, mas deixar o substantivo no singular.
Como pano de fundo, há o contexto da imigração dos árabes para o Brasil no início do século 20. Eram, em geral, sírios e libaneses que chegavam com passaportes “turcos”, como eram apelidados, segundo a autora. A maioria, expulsa por questões político-religiosas na Síria.
Mas o que salta em primeiro plano é a ruidosa relação das irmãs Nuria (interpretada por Cláudia Mello), Dulce (Juçara Morais) e Vitória (Bassitt). Elas batem boca, a caçula e a mais velha chegam a se estapear, mas tudo é sublimado pelo afeto.
Pelo menos esta foi a percepção de três espectadores que assistiram a um ensaio na semana passada, a convite da Folha.
“É uma peça sobre o amor”, diz o jornalista Mohamed Yunes Abdul Ghani Abdul Ghani, 50, tesoureiro da Fearab (Federação de Entidades Árabe-Brasileiras do Estado de São Paulo).
Ele chorou na cena em que as irmãs põem de lado os problemas financeiros e se irmanam de fato. “O papel da mulher é o segredo: se ela educa o homem para o bem, ele será um bom homem. Daí o valor que o árabe dá à família e à mulher, a ponto de às vezes sufocar”, diz Abdul Ghani, em conversa com o elenco e a diretora do espetáculo, Regina Galdino.
“A autora foi muito feliz em retratar o lado emotivo do árabe, um povo que briga muito entre si, mas tem laços fortes. Quando um irmão precisa, ele dá a alma”, diz Eduardo Elias, 62, presidente da Fearab.
Para o escritor Mustafa Yazbek, 53, “As Turca” transcende as preocupações com a herança cultural sírio-libanesa que se propõe a transmitir.
“É como se a humanidade das personagens superasse a configuração antropológica arábica veiculada por algumas informações específicas”, diz o autor de “Palestinos – Em Busca da Pátria” (1995). De acordo com Yazbek, as irmãs poderiam ser oriundas da cultura do Oriente Médio, mas também da Espanha, da Itália, de Portugal ou do Extremo Oriente, e a “simplicidade comovedora” seria a mesma.
Bassitt, 39, concorda com essas leituras. A peça recorta universos da família, da política (um atentado numa universidade norte-americana em Beirute deixará estilhaços também entre as irmãs), da palavra com extrato poético e, claro, da comida como símbolo agregador.
Nascida em São José do Rio Preto, bisneta de libaneses, Bassitt leva para a peça parte de sua própria família, ainda que o recorte não seja autobiográfico.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.