Folha de S.Paulo
4.2.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 04 de fevereiro de 2006
TEATRO
Ator mergulha na vida e no pensamento do psiquiatra em monólogo co-escrito e dirigido por Domingos Oliveira
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O ator carioca Sérgio Britto diz que quebrou um jejum de décadas quando voltou a sonhar, a partir do ano passado, impregnado pelo processo de composição do monólogo “Jung e Eu”. Depois de temporadas no Rio e em Brasília, o espetáculo co-escrito pela analista Giselle Kosovski e por Domingos Oliveira, com direção deste, entra em cartaz hoje em São Paulo, no Sesc Belenzinho.
“Tenho sonhado todos os dias, sonhos terríveis”, diz Britto, 82. Uma de suas narrativas oníricas: Britto participa de uma reunião em que todos os presentes ganhavam um paletó, menos ele.
“Eu queria um paletó, símbolo de coisas que desejo agora, mas sei que vou perdê-las. Daqui a pouco entenderei o porquê”, diz Britto, deixando as entrelinhas para os seus botões.
O estímulo vem do contato que o ator estabeleceu com o pensamento do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), interlocutor de Freud -com quem depois rompeu- que via os distúrbios mentais e emocionais como fruto de um proceso de tentativa do indivíduo de buscar a perfeição pessoal e espiritual. “Descobri uma cosia curiosa: o sonho engana a gente, faz pensar que sonhamos a noite inteira, mas dura minutos”, diz o ator.
O enredo corresponde ao que aconteceu na vida real. Diante da impossibilidade de adquirir os direitos autorais para a adaptação teatral da autobiografia de Jung, “Memórias, Sonhos e Reflexões”, Britto e Oliveira tiveram que “inventar uma peça”.
No plano da ficção, o ator shakespeariano Leonardo Svoba, na casa dos 80, envolve-se numa montagem em que interpreta Jung. Sempre resistiu a mergulhos filosóficos, psicológicos, e agora lida com conceitos como “inconsciente coletivo”.
Só que o sujeito que lhe propõe tal empreitada o deixa na mão. Parte atrás de uma amante. Svoba decide tocar o projeto sozinho e passa a contar com a ajuda do próprio Jung, personagem com que contracena em sonhos.
Para pontuar a transição entre o ator veterano e o psiquiatra, Britto lança mão apenas de um óculos. “O espetáculo tem sido um dos maiores prazeres da minha vida”, diz. “Não resulta didático, não é chato.”
A cenografia de Marcelo Marques e o desenho de luz de Paulo César Medeiros conformam um espaço dual: há o canto de Jung, com mesa, cadeira, telefone, e o de Svoba, com mesa, poltrona e o retrato de uma mulher.
Para o intérprete, o universo junguiano é propício à arte dramática. “Ele afirma que o sonho maior da vida é o teatro. O autor, o diretor, o ator, enfim, são todos sonhadores. Jung tem completa razão. Quando representa, o ator busca na memória elementos para compor o seu personagem, como que num sonho.”
Em 2003, Britto passou pela cidade com o solo autobiográfico “Sérgio 80” e com o clássico “Longa Jornada de um Dia Noite Adentro”, de Eugene O’Neill, em que vivia um ator fracassado, patriarca avaro.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.