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Folha de S.Paulo

O último sinal

9.4.2006  |  por Valmir Santos

São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

TEATRO 
Interpretando Vladimir na primeira montagem profissional de “Esperando Godot” no Brasil, Walmor Chagas relembra Cacilda Becker, que teve um aneurisma no intervalo da peça

VALMIR SANTOS 
Enviado especial a Guaratinguetá (SP) 

A fase moderna do teatro brasileiro emenda um episódio trágico na primeira montagem profissional de “Esperando Godot”. A temporada estreou em 8 de abril de 1969 e foi bruscamente interrompida em 6 de maio do mesmo ano.

Na tarde daquele dia, a atriz paulista Cacilda Becker sofreu um aneurisma cerebral no intervalo da 42ª apresentação da peça, uma matinê para estudantes no teatro batizado com seu nome (um auditório com pouco mais de cem lugares na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo). Foram 39 dias em coma. E a morte, em 14/6/1969.

Na platéia, era um silêncio só, não sabíamos se estavam ouvindo ou dormindo 

Cacilda perdeu a consciência quando vestia o figurino esfarrapado de Estragon. Contracenava com Walmor Chagas, o intérprete de Vladimir. Casados, eles haviam se separado meses antes, mas seguiam parceria artística.

Na entrevista a seguir, Chagas, 74, rememora os bastidores daquela encenação de Flávio Rangel (1932-1988). Até então, tinha-se notícias de montagens amadoras de “Esperando Godot” por Alfredo Mesquita (São Paulo, 1955) e Luiz Carlos Maciel (Porto Alegre, 1958).

Walmor Chagas afirma que nunca mais assistiu a outra encenação do texto de Beckett. “Me dá desespero”. 

Folha – O que “Esperando Godot” representou em sua carreira?

Walmor Chagas – Foi uma peça que me marcou profundamente não só pela importância, pela qualidade, mas pelo fato pessoal e dramático que foi a morte da Cacilda. Mesmo se ela não tivesse morrido, para mim o texto continuaria tendo importância;
Beckett fez uma curva na vida cultural do mundo. Ele veio denunciar o apocalipse, o nada em que a sociedade vive cada vez mais.

Sabíamos que o texto representava o fim dos tempos, a mudança de uma era. Hoje, a humanidade fica esperando que alguma coisa aconteça. Há pessoas que ficam esperando a Bolsa subir, esperando para saber se vai ter guerra. Não há mais ação, apenas a espera. A humanidade está em espera. É isso que Beckett diz, é o fim dos tempos, o fim do jogo. O Godot seria uma espécie de poeta-profeta em relação ao que estamos vivendo, uma fase de transição, de espera não se sabe de quê. A peça é basicamente sobre o desespero, a miséria do homem sem Deus 

Folha – Na época, Flávio Rangel declarou que queria dirigir “Godot” para falar nas entrelinhas; recorria à metáfora porque não podia ser direto -havia meses da decretação do AI-5. Sua motivação também era política?

Chagas – Não. A motivação, se fosse procurá-la na peça, era pessoal. O Brasil estava se acabando naquele clima [do regime militar], mas ensaiávamos desde fevereiro, não pensávamos que aquilo seria contra a ditadura. A gente sabia que era mais que isso. Politicamente, a peça queria dizer mais que isso.
 

Folha Os militares haviam detido Rangel, acusado de subversão…

Chagas
Mas a motivação era a grandeza do texto. Inclusive, Cacilda e eu nunca fomos muito de fazer peças políticas. O que a gente fazia tinha importância política no sentido de que eram peças de cunho psicológico que modificava a cabeça preconceituosa da burguesia, mas não que fosse mudar o regime político, criticar o AI-5. A peça era muito maior que uma ditadura. Quem fazia isso era o Teatro de Arena.
 

Folha – Como descobriram Beckett?

Chagas – Eu e Cacilda tínhamos voltado de uma viagem aos EUA e à Europa, no final de 1968. Ainda não conhecíamos a obra de Beckett. Em Paris, vimos Roger Blin dirigindo e atuando em “Fim de Partida”. Havia cerca de 30 pessoas na platéia, numa matinê. Fomos ao seu camarim e vimos aquele ator extraordinário comendo numa marmitinha, num teatro pequeno, que parecia sob escombros, uma coisa triste. Aquilo nos tocou profundamente.

A viagem também foi determinante para a gente perceber os caminhos, ou melhor, os descaminhos do teatro contemporâneo, nos quais a expressão corporal valia mais que o texto, elemento que não tinha tanta importância nas peças do “Living Theatre”, mas sim a nudez, a ação corporal, como em “Paradise Now”, que vimos em Nova York. Assistimos também a “Us”, de Peter Brook, em Londres, que era especificamente contra a Guerra do Vietnã. Esses espetáculos foram importantes.

Na volta, evidentemente, não podíamos fazer uma peça careta, não era mais hora para isso, o mundo estava mudando. E “Esperando Godot” representava essa mudança.
 

Folha – Vocês trouxeram esses subsídios para o diretor?

Chagas
Não foi difícil, porque eu e Cacilda chegávamos lá com todas as cenas ensaiadas. Coitado do Flávio, ele ficaria chateado com isso, mas sabia muito bem… Nós estudávamos a peça lá no apartamento da Cacilda [na avenida Paulista]. Já não morávamos juntos, estávamos separados.

Cada vez que ensaiávamos com o Flávio, já tínhamos feito em casa, chegávamos com a peça pronta, entendida, a dramaticidade, a angústia.
 

Folha – Você e Cacilda enfatizavam a expressão corporal?

Chagas –
Nem tanto. Mais a Cacilda, que dava uma cambalhota nos momentos de vazio, quando os dois personagens paravam e não sabiam mais o que fazer, um tempo recorrente na peça. Na verdade, era uma mistura de mendigo com palhaço, mas sem nariz de palhaço. Éramos mais mendigos, pessoas à margem. Vestíamos um casaco esfarrapado, solto, com um chapéu-coco.
 

Folha – E que tal a recepção do público? Muito estranhamento?

Chagas – A montagem fez uma carreira de 42 apresentações. A gente sabia que haveria estranhamento. Afinal, Beckett estava sendo montado profissionalmente pela primeira vez. Na platéia, era um silêncio só, não sabíamos se estavam ouvindo ou dormindo. Era um um texto de difícil compreensão.
 

Folha – Você é um ator devoto da palavra em cena…

Chagas – Isso mesmo. A última peça que fiz, “Um Homem Indignado” [2005, com direção de Djalma Limongi], tocava nisso: a palavra acabou, agora é a imagem que diz tudo. Dizem que uma imagem vale por mil palavras. Pronto, para que palavra? Não precisa mais peça, só televisão e cinema. O mundo novo veio pela imagem. Depois do Godot, o que vem é a imagem, essa revolução cultural que aconteceu. Porque, até ali, Beckett vinha declarando a morte da palavra. Às vezes, Vladimir e Estragon não têm e não sabem mais o que falar, porque as palavras não dizem mais, só as imagens.

Quando havia o teatro da palavra, a arte do teatro fazia parte da construção da nação. Vamos dizer, era importante, fazia parte por meio de um grupo como o Opinião. Agora, não. O teatro perdeu a expressão. A censura causou um mal profundo, quebrou o espelho no qual o brasileiro se representava. E ninguém fala da ditadura, como se ela não tivesse ocorrido. A censura reduziu o divertimento à novela, futebol e Carnaval. Esses três elementos, de alguma forma, continuam sendo teatralizados.
 

Folha – Você pode rememorar como foi o intervalo do espetáculo em que Cacilda sofreu o aneurisma cerebral?

Chagas – Foi uma surpresa. O primeiro ato transcorreu perfeito. Terminou, fomos tomar um cafezinho, fumar um cigarro nos bastidores. Tocou o primeiro sinal, aí a Cacilda disse: “Estou com uma dor de cabeça”. Ela sempre tomava uma aspirina antes de fazer um espetáculo.

Perguntei se tinha tomado, disse que sim, mas a dor de cabeça aumentava. Veio o segundo sinal. Sugeri que tomasse mais uma aspirina. Ela disse: “Eu acho que estou tendo um derrame”. Foi sua última frase, na 42ª sessão da peça. Um rapaz surgiu perguntando se podia dar o terceiro sinal, eu disse que não, pedi que procurasse algum médico na platéia. Ela foi levada ao hospital.

Algumas pessoas diziam que essa peça era maldita, que quem fazia morria. O que aconteceu com Cacilda poderia ter ocorrido com qualquer um, em qualquer peça. Não houve nada de estranho.

Cacilda não foi mais a fundo com o Estragon do que o foi com personagens anteriores. Ela ia a fundo em tudo, tinha uma profunda compaixão pelo ser humano. Era a única atriz brasileira trágica. O público sentia que ela estava à beira do choro, do riso ou da morte a cada instante, mesmo numa comédia, tal o chamado feixe de nervos que tinha.
 

Folha – Te angustiava ser ator, marido e empresário dela?

Chagas –
Eu não agüentava mais. Era o responsável pela escolha das peças que tivessem de acordo com a grandeza da atriz. Que dessem bilheteria e estivessem de acordo com o momento teatral da época, totalmente esquerdizante, político, enquanto nós não éramos. Era difícil escolher uma peça para ela.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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