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Folha de S.Paulo

Antunes faz “eterno retorno” a Nelson

25.12.2006  |  por Valmir Santos

São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

TEATRO 

Diretor retoma a obra do dramaturgo pela sexta vez ao anunciar a montagem de “Senhora dos Afogados” para 2007
 

De 1947, uma das peças míticas e “desagradáveis” do autor terá encenação apoiada no grotesco e no expressionismo
 

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local 

Um dos responsáveis por redimensionar a obra do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-80), apanhá-lo pelo espinho e pela raiz da “flor de obsessão”, Antunes Filho volta pela sexta vez ao autor no segundo semestre de 2007. Vai levar ao palco “Senhora dos Afogados”, escrita em 1947.

Suas últimas incursões foram “Nelson 2 Rodrigues”, de 1984 (junção das peças “Toda Nudez Será Castigada” e “Álbum de Família”), e “Paraíso Zona Norte”, de 1989 (“Os Sete Gatinhos” e “A Falecida”). Os espetáculos decalcavam dos personagens o inconsciente coletivo com o qual Antunes, 77, balizou seu palco na década de 80 e parte da de 90, extasiado pela teoria dos arquétipos do suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), contraponto ao inconsciente individual freudiano.

Aliás, estaria o encenador em movimento de “eterno retorno”, para lembrar o mito do romeno Mircea Eliade (1907-86), outra fonte recorrente? “A Pedra do Reino”, que adaptou do romance de Ariano Suassuna e reestréia em janeiro, apresenta traços picarescos umbilicais em relação a “Macunaíma” (1978), de Mário de Andrade.

“Levantar o Nelson agora é importante. Ainda há muito desentendimento a respeito dele”, diz o diretor. “Querem torná-lo um autor somente pornográfico e reacionário, de novo. De vez em quando, é bom reafirmar que ele é um grande poeta”, avalia.

Prestes a completar 25 anos à frente do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), em 2007, braço do Sesc em São Paulo, Antunes decidiu ir ainda mais a fundo no universo mítico rodriguiano que já visitara em “Álbum de Família”.

Também fazem parte do agrupamento das chamadas “peças míticas” (ou “desagradáveis”, como dizia o autor) as obras “Anjo Negro” e “Dorotéia”. Essa classificação dos 17 textos de Nelson para teatro foi proposta nos ano 80 pelo crítico Sábato Magaldi -e endossada pelo autor. Ela compreende ainda as “peças psicológicas” e as “tragédias cariocas”.

As “Peças Míticas” foram escritas entre 1945-49 e têm em comum a influência estrutural das tragédias gregas. Antunes brinca que, na largada, já se adentra “Senhora dos Afogados” em desvantagem, dadas as sombras que a acompanham, como “Electra Enlutada”, de Eugene O’Neill, e “Orestéia”, de Ésquilo, influências de Nelson.

O mar é um personagem invisível em “Senhora…”, mas “próximo e profético, que parece sempre estar chamando os Drummond, sobretudo as suas mulheres”, como diz a rubrica.

Na casa dos Drummond, ou as pessoas se afogam (o filho) ou são afogadas (as irmãs Dora e Clarinha) por Moema, que deseja ser a “filha única” do pai e chega mesmo a conspirar para a morte da mãe. Chefe da família, o juiz Misael idealizava a castidade e a fidelidade do clã, mas o próprio traíra e matara uma prostituta 19 anos antes, com golpes de machado no pescoço. Perde-se o paraíso e jaz o romantismo desencantado.

“Essa peça está varrida de suicidas, incestuosos, adúlteras e insanos. (…) Num mundo como o nosso, definitivamente infeliz e doente, é quase uma obrigação ser também infeliz, também doente. Permito-me uma comparação: rir neste mundo é o mesmo que, num velório, acender um cigarro na chama de um círio”, escreveu Nelson no programa da primeira montagem. Foi em 1954, no Rio, sob vaia e sob direção de Bibi Ferreira. Até hoje, é das menos montadas profissionalmente entre as 17.

Para Antunes, o subtexto dá notícias de uma purificação por meio da atrocidade. “Isso é Artaud puro”, diz o diretor, citando o teatrólogo francês Antonin Artaud (1896-1948). “Nelson tem esse ímpeto libertário, mas com muita ironia, muito sentido brasileiro, não europeu, americano ou grego.”

Recentemente, Antunes montou obras de Sófocles e Eurípides, mas a tragicidade que deve imprimir aqui depende de “o herói escorregar na casca de banana”. Ou seja, sua opção declarada é pelo grotesco, pela carnavalização. Admite que nutria resistência quanto a “Senhora…”, que “não dava pedal com seu clima pesado”. A saída é colar o horrível ao disforme.

“É burra a decisão de se fazer um Nelson Rodrigues trágico e mítico. Não se deve esquecer que se trata de uma tragédia brasileira na qual o grotesco é fundamental. Se Shakespeare sabia usá-lo tão bem, a comédia no meio da tragédia, por que o Nelson não pode fazer muito mais? Ele não tem nada a perder; é brasileiro, latino-americano, não é um inglês.” 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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