Folha de S.Paulo
21.1.2007 | por Valmir Santos
São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007
TEATRO
Filha de Soffredini monta “Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube”, de 1969
Comédia baseada em “Farsa de Inês Pereira” volta ao TBC; para Renata Soffredini, história é “premonitória” ao antecipar questões culturais
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
No final dos anos 60, quando a indústria do entretenimento ainda não havia avançado pela periferia como nos dias de hoje, um ator recém-formado na Escola de Arte Dramática (EAD, depois anexada à USP) transpôs para uma comunidade de bairro de São Paulo, com seus costumes, preconceitos e anseios, a peça “A Farsa de Inês Pereira”, clássico do português Gil Vicente escrito em 1523.
“Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube” (1969), no título que diverte por si, assentou de vez a dramaturgia de Carlos Alberto Soffredini (1939-2001) na linhagem de uma estética popular. A peça é apresentada às novas gerações por sua filha, Renata Soffredini, que acabou de estrear nova montagem no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde fica até março.
Soffredini abriu caminhos para o que a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e seu grupo, a Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, representam para o teatro brasileiro hoje, algo equivalente ao que fez com o diretor Luiz Fernando Carvalho na TV -não por acaso, Abreu e Carvalho trabalham juntos desde “Hoje É Dia de Maria”, microssérie da Globo cujo roteiro é embrionário de uma fábula que Soffredini pôs no papel nos anos 80.
“Mais Quero Asno…” permite entrever um momento da história do Brasil no qual a cultura de massa ainda não havia se instaurado. “Parece premonitória às vezes, com a presença de uma celebridade, mas os costumes não estavam tão alterados pela TV, as famílias eram simples, e a periferia ainda não tinha sido contaminada pelo consumismo”, diz Renata, 44.
O enredo de “A Farsa de Inês Pereira” é preservado: venturas e desventuras de uma moça entre o casamento possível e o dos sonhos. Amigos e familiares empurram Inês (Fernanda Soto) para os braços do filho do dono da padaria, Pedro (Fernando Aveiro), mas ela está apaixonada pelo ídolo, o cantor John Braz (Murilo Inforsato).
Na releitura ou paráfrase de Soffredini, tudo se passa em um bairro pobre, implicando linguagem e comportamento social. Ele definia a obra como uma comédia musical, “quase opereta”. Em 1987, o autor dirigiu “Mais Quero Asno…” no mesmo TBC e com Renata no papel de Inês. Era um projeto do Núcleo de Estética do Teatro Popular (Estep/1085-1988).
Renata ressuscitou o Estep no ano passado, com artistas de Ribeirão Preto que ora estão no elenco, e quer reativar a pesquisa do pai em torno da interpretação e da dramaturgia com ênfase no que ela chama de “linguagem estética Soffredini”.
“É uma opção que prescinde de cenário, despojada nos figurinos, no desenho de luz, e se apóia no jogo do ator com a platéia, como se o público e os personagens estivessem numa visita à casa da mãe da Inês”, diz.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.