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contracena

MODELO2

19.5.2010  |  por Valmir Santos

Valmir Santos

O paradoxo em Policarpo Quaresma é a sua competência. Antunes Filho inscreve seu nome na história do teatro brasileiro, entre outras razões, porque exímio compositor de cenas corais na mesma medida que consegue realçar a presença e o talento de uma atriz ou de um ator. Esses pilares estetas aparecem firmes no novo espetáculo do Grupo Macunaíma, extensão do Centro de Pesquisa Teatral. Mas deixam no ar uma segurança incômoda se colocada em perspectiva com voos mais arriscados nas proposições formais dos últimos trabalhos.

 

Desde que atravessou a trilogia das tragédias gregas em meados da década, visitando Sófocles e Eurípides, Antunes voltou-se à dramaturgia contemporânea, ora de próprio punho ora vertendo romances brasileiros para a cena. Montou Paulo Santoro, do Círculo de Dramaturgia do CPT. Montou dois Nelson Rodrigues. Adaptou um acalentado romance de Ariano Suassuna. E concebeu aquela que pode ser considerada a sua criação mais ousada nos últimos anos, Foi Carmen, versões de 2005 e 2008, na qual a escrita cênica e as atuações despontam com vocabulário alentador ao abrir uma terceira via entre a biografia de Carmen Miranda e a dança butô de Kazuo Ohno. Ao evocar os espíritos celestial e terreno do dançarino centenário, o diretor e seus melhores atores alcançam outras dimensões, alteridades à qual o público também é desafiado.

 

O movimento de pensar e falar ao Brasil de hoje por meio da interpretação de seu passado não muito distante encontra ecos ainda no cancioneiro de Lamartine Babo, de 2009, com um Antunes sinceramente saudoso na autoria do roteiro para o musical dramático dirigido por Emerson Danesi, ator e seu assistente mais contínuo. Esse percurso de equilíbrios e desequilíbrios, após a fase das tragédias gregas, culmina em transversal tragicômica, a quintessência do xenofobismo na literatura brasileira: o Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

 

Levar Quaresma à cena em ano de Copa do Mundo e eleições presidenciais é cutucar seu tempo: as contradições dos oito anos do lulismo, a lama da corrupção em todos os quadrantes partidários, o crescimento e a estabilidade econômicos no período, o Brasil como bola da vez para o chamado Primeiro Mundo e os Brasis das condições de trabalho análogas à da escravidão, para resumir a ópera dos três vinténs.

 

Antunes tem esse faro. Em 1993, com Vereda da salvação, de Jorge Andrade, ele expunha em uma só pá os conflitos agrários e os espasmos do fim da Era Collor – antológica aquela última cena em que seguidores e seu líder messiânico, encurralados na mata, pulam com as mãos estendidas aos céus quando são metralhados pelos proprietários e soldados ao som de Pensa em mim.

 

Para tocar o que se supõe o transe coletivo dos dias de hoje, pêndulo entre idealismo e realidade, a encenação de Antunes não renova a energia estética de fontes conhecidas e das quais já o sabemos capaz. Mostra-se refém da excelência na composição e deslocamento coral dominantes no palco do Teatro Sesc Anchieta. Como protagonista, a caracterização no enunciado, nos gestos e miradas do Quaresma de Lee Thalor remete de imediato ao Quaderna d’A pedra do reino. Quaderna, Quaresma. De fato, há pouca variação no registro desse ator que revelou potencialidades outras e ímpares como quando viveu o Tuninho na também tragédia rodriguiana à carioca A falecida vapt-vupt, no ano passado.

 

O curto espaço de tempo entre as teatralizações de Suassuna e a de Lima Barreto – quase quatro anos – contribui para a sensação de procedimentos saturados, inclusive o resgate relâmpago do fonemol, o estranhamento da língua inventada e aplicada com ênfase em Nova velha estória (1992). Ou a remissão à polícia nazista no trato dos prisioneiros de guerra, espectro da intolerância em ascensão anotado em Drácula e outros vampiros (1996).

 

Em alguma medida, todo artista é um artista de si mesmo; gera uma obra com identidade a ser lida na linha de tempo. O que surpreende em Policarpo Quaresma é a autocitação tão concentrada. O realinhamento, percebe-se, vem pelo menos desde Macunaíma (1978), uma adaptação do romance de Mário de Andrade, espetáculo demarcador do caráter antuniano experimental e inovador. Mais de três décadas depois, vemos, ao contrário, um artista seguro ao desfilar coros como vinhetas de histórias em quadrinhos para as ações do major caricato em sua pregação nacionalista pela capital federal e pelo interior do país no final do século XIX.

 

Ao exacerbar o que já é relevo no romance o espetáculo carrega a mão nas imagens: os hinos militares, as bandeiras e bandeirinhas, a movimentação coreografada que dissolve seu vigor pela repetição. Quando as saúvas atacam no sítio, não é difícil prever que a batida coletiva de pés no tablado logo evolui para a dança de sapateado. A ação é redundada em seguida no solo do ator no papel-título. Eis uma solução para sapateado mais impactante que a anterior, intermezzo lírico e expositor a contradizer o modismo estrangeiro no corpo de um visionário patriota.

 

O mergulho no grotesco deixa poucas nuanças para acompanhar mais claramente a curva do desencanto de Quaresma. A desfiguração é aliviada ao final, quando ele toma consciência do enredo em que está metido e a ilusão se dissipa em sua comovente carta destinada à irmã Adelaide, um solilóquio em que o paradoxo do comediante Lee Thalor vem à luz sob trevas, um das passagens mais tristes e belas do espetáculo. Há outras, como não poderia deixar de ser em assinatura de Antunes Filho. Vide a cinematográfica sequência da morte de Ismênia, por Natalie Pascoal, a vizinha e filha de general abandonada às vésperas de casamento após anos de noivado, desmilinguida em seu vestido de noiva, lassidão e loucura como nos sentimentos mais dolorosos de uma ária.

 

O espetáculo consegue mapear a mitologia “policarpesca” no sanatório geral, na brincadeira mascarada do “tangolomango”, na obsessão pelo tupi-guarani. Acresce ao pendor folclórico a musicalidade resgatada da opereta, prima pobre pouco visitada no teatro. Chega a assumir a licença poética com um papagaio à la Zé Carioca, lembrando o processo de aculturação. Engenhocas como os canhões e o pulverizador de fumaça contra a praga de ontem e a dengue de hoje passeiam pelo espaço cenográfico vazio. Objetos, imagens e personagens são como que abduzidos de quando em quando, concepção de Rosangela Ribeiro que também emenda os figurinos civis e militares com as devidas rupturas bucólicas e rigores bélicos, em que pese a fixação no símbolo da bandeira nacional.

 

Posto diante do espelho, neste 2010, o espetáculo parece refletir um Antunes Filho como Policarpo de si, fiel a um sistema de ideias e práticas do teatro que o liberta e o condiciona. Descompasso que a geração de espectadores em seu encalço desde o início dos anos 1990 ainda não havíamos presenciado de modo tão flagrante.

 

(20 de maio de 2010)

 

Temporada em São Paulo
27 de março a 6 de junho
Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h
Teatro Sesc Anchieta, Rua Doutor Vila Nova, 245, telefone 11 3234-3000
R$ 20

 

 

 

 

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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