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Prefácio

Acenos [dramaturgia de Anderson Aníbal]

6.1.2011  |  por Valmir Santos

(Texto publicado na introdução ao três livros com as respectivas peças Cinema, Alguns leões falam e Vilarejo do peixe vermelho, todas assinadas por Anderson Anibal, diretor e cofundador da Companhia Clara de Teatro, em 2002, em Belo Horizonte. As edições do autor saíram no final de 2010, acompanhadas também de escritos da diretora da Companhia ZAP 18, Cida Falabella, da jornalista e atriz Julia Guimarães e do crítico e professor de teatro Marcello Castilho Avellar).

 

 

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Por Valmir Santos

 

Escrever é um ato plural, os heterônimos que o digam. E escrever para o teatro não cabe nas linhas do mundo. Nas histórias da Companhia Clara as pessoas querem ser afetadas pelas outras, mesmo quando fingem que não é com elas. Dizemos pessoas porque personagens que geram identificação ao expor suas angústias e delícias de ser. Um curioso estado de intimidade dialética cultivada sob manto épico. Narradores, atores e máscaras brincando entre si, tão próximos e tão longe, como se levados pelo fluxo das águas mansas ou turvas em canoas poéticas à maneira de origamis dobrados com a austeridade sutil das palavras de Anderson Aníbal.

 

Lê-las impressas nestas folhas de celulose que seguras nos realinha com a gramática plantada no espaço cênico invariavelmente alvo. O espetáculo ao vivo constitui a mediação primeira, também ele uma tela branca irradiadora do labirinto imaginário em que esses amores e amizades vão se dando, enlaces e dissolvências entre o devir e a saudade. A linguagem cinematográfica permeia as elipses, os jogos de impermanências refletidos em diálogos, os deslocamentos físicos e da alma, as imagens oníricas poderosas como a da unha do polegar da mão transformada em planície. São mínimas as grandezas de que são feitas essas fábulas.

 

As narrativas de Aníbal são pontuadas por essas lentes angulares sobre coisas miúdas. Um signo de simplicidade amparado na esperança da fala como meio de comunicação direta como o público. Isso não quer dizer desprezo pela metáfora. Ao contrário, há um quê de herança do barroco da cultura da Minas Gerais que lhe é berço. Se o verbo vem engravidado por imagens, a transposição destas para a cena revela-se lapidada, econômica, sem brecha para o transbordamento de cores. A tônica é o branco, no máximo uma variação para o bege. O autor enquanto diretor investe na limpeza gestual, na enunciação, na composição territorial. Tudo para sublinhar a performance da atriz e do ator que dançam com a luz e contracenam com o silêncio e a música cantada e tocada ao vivo.

 

Seus enredos lembram a articulação dos contos literários, uma busca constante pela síntese nos diálogos e descrições. O leitor ou o espectador não são necessariamente conduzidos por climas que vão desenlaçando o conflito, feito o percurso dramático clássico. Antes, as peças ganham contornos de uma paisagem em movimento, de um registro fotográfico em trânsito, de um traveling. Brotam palavras espaciais como quando o pingo de colírio no olho pode retratar as lágrimas, a chuva em cântaros lá fora ou as poças no coração abandonado. Ou como quando copos de água são despejados sobre a cabeça para sentir o quanto o mar imaginado cabe dentro de cada um.

 

Os conflitos jamais são expostos ao pé da letra. Eles irrompem de modo subliminar, pendor antidramático de Aníbal que deixa transparecer o seu sentimento de mundo em cada frase. Ele não quer crer na impossibilidade do humano, no culto ao niilismo. Sua escrita para o teatro precisa acreditar que este é o verbo principal para transformar alguma coisa em realidade, como confere a uma das suas pessoas inventadas. As didascálias ancoram mais objetivamente esses lampejos filosóficos no afã de encontrar criadores dispostos. Resultam rubricas de incitação, não o mero apontamento técnico.

 

Inventar é resistir à distopia. Como a máquina de não sentir dor mencionada em Alguns leões falam. Um ventilador em funcionamento, postado no chão e apontado para o teto, ajuda a sustentar uma pena branca em flutuação. Na medida em que a plateia observa esse mecanismo artificial a desafiar a lei da física, breves segundos ou minutos que sejam, seus medos e inseguranças iriam para o espaço tal qual a pena. Simples e cândido assim, na voz de uma das crianças protagonistas na abertura da peça. Eis um teatro que vai mais fundo, não tangencia autoajuda, escapismos de ocasião. Seu esforço é pelo aceno ao outro. Uma dramaturgia tecida com despojo para desenhar um quadro de beleza e de espanto sobre a condição humana.

 

Histórias de uma gente jovem que não se cansa de atravessar montanhas em pensamentos para pisar a areia da praia, para ver o mar azul esverdear. Essa ânsia pelo desconhecido que tanto move as pessoas de Aníbal traduz o torvelinho oceânico diante do céu e do inferno do desejo. Pulsações de vida e de morte no equilíbrio distante entre sonho e realidade. Uma dramaturgia de despedidas para radicar que a vida é feita de encontros.

 

Dispostas nestas folhas na ordem com que vieram à luz, Cinema, Alguns leões falam e Vilarejo do peixe vermelho cristalizam a urgência de sentir e dar sentido. Escutar, tocar, respirar, digerir, ver as emoções. Verbos proativos cada vez mais embotados. Por isso o abraço é uma expressão recorrente nas cenas, elo daqui a pouco convertido em ruptura em três ou trinta anos, não importa o tempo. No bom teatro, como no amor, a dor é indelével e o seu contrário, o prazer, é garimpado na lida mesma do viver.

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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