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contracena

De Helio Eichbauer para Flávio Império

7.6.2011  |  por Valmir Santos

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São Sebastião do Rio de Janeiro, outono 2011.

 

Caro amigo,

 

Cá estamos, imersos na Mata Atlântica úmida e perfumada a recordar os tempos de luta e vitória de nossa juventude.

 

Procuro a fragrância de uma flor esplêndida, ou, por memória involuntária, reconstruir nossos passos perdidos.

 

As bananeiras em flor (que você tanto pintou e seus mangarás) tentam revelar-me alguns segredos inconfessos de nossas andanças (danças) pelo Brasil. A amizade entre artistas é sempre secreta.

 

A partitura matinal da floresta e a dos pássaros da madrugada despertam minha imaginação. Teríamos sonhado nossas vidas? Em que vazio, em que campo realizamos nosso trabalho? La vida es sueño.

 

Hoje, você habitante de outra Galáxia será mais uma vez evocado em exposição (e muitas outras serão necessárias para redescobrir sua belíssima obra!).

 

Escrevendo para o catálogo:

 

Festejar Flávio Império é celebrar a vida
                                    em seu mistério
                                 em seu esplendor.

 

SER JOÃO
SER PEDRO
SER ANTÔNIO

 

Recebi, pela Sociedade Cultural Flávio Império, o convite honroso para desenhar a exposição, através de sua querida sobrinha e muito artista Vera Hamburger, hoje importante cenógrafa e diretora de arte, de grande talento e sensibilidade.
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Que família ilustre e amorosa, hein, rapaz!? Convite que me deixou atônito.

 

Teria eu habilidade suficiente para apresentar, como cenógrafo, parte tão expressiva de sua obra?

 

Embarquei, temeroso, nesse Bateau Ivre, e aqui estou aportado, náufrago numa ilha grande tropical e mágica. Estamos acampados num terreiro e preparamos o ritual.

 

Para festejar sua presença, ocupamos a área da exposição como uma festa de São João (a mais bela festa brasileira!), na qual se instalou (constelou) um ateliê de serigrafia, aberto ao público – espaço livre de criação artística, artesanal, de encontros e ideias. Teto embandeirado, São João em festa ou preces budistas, “As bandeiras me libertam do plano fixo da pintura”. Prisma com três santos juninos: João, Pedro e Antônio, de sua autoria. Janelas com seus desenhos de folhagens, jardim tropical e filtros verdes, biombos que sustentam telas originais de serigrafia, utilizadas diversas vezes por você, Flávio, com marcas de registros cromáticos (por onde andou a cor…), lonas coloridas a ser manchadas aleatoriamente pelos artesãos impressores, ao centro uma escultura aérea – A Árvore da Vida, revoada de pássaros impressos sobre seda, por sua grande amiga Loira Cerrotti (aqui na janela os pássaros responderam assanhados). Pensamentos impressos sobre estruturas/chassis, forrados com tecido rústico, o avesso de um cenário, cercam as paredes da área de exposição. Filmes em super-8 de suas viagens, andanças brasileiras, amigos e lugares (Road-Movie).

 

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Sua viagem pelo Brasil, como você mesmo observou, semelhante (e dessemelhante) a de Mário de Andrade, revelou a extensão de um país magnífico, barroco e popular, inventivo, cheio de Humor –

Amor para dar.

 

Não é muito (nunca o bastante), mas o suficiente para armar o circo dos artesãos e a festa das cores. Fazer a tribo conviver intensamente.

 

Os meninos que fomos participaram “de espetáculos de fundo de quintal”, construções improvisadas “com cortinas de cobertor e pregadores nos varais”; escapamos dos video games, das musiquinhas eletrônicas, da parafernália digital, que têm levado a imaginação para o brejo. O teatro nos acompanha desde a infância, o de cartão, os bonecos, os fantoches de praça. Foi nessa Caixa de Mágico que você exerceu seu enorme talento de arquiteto, cenógrafo, artista plástico e professor.

 

Aprendemos com Leonardo da Vinci a enxergar nas paredes manchadas o princípio da paisagem apenas esboçada pela natureza; e, na pedra bruta, a escultura oculta.

Você foi um daqueles jovens florentinos do ateliê de Andrea del Verrocchio (da Bottega del Verrocchio), aprendizes que exerciam diversas atividades com as mãos e discutiam filosofia, música e poesia, ali mesmo onde pernoitavam.

 

Você sabia, sabiá, da grande importância de trabalhar com as mãos, que a revolução do pensamento grego foi a mão, o respeito pelo trabalho manual, e que alguns dos mais excelentes pensadores gregos eram filhos de marinheiros, fazendeiros e tecelões (sacerdotes e escribas de outras paragens, criados na opulência, relutavam em sujar as mãos). Os operários sujam as mãos.

 

Contava com o vento…

 

Varais para secar os panos pintados.

 

Contava com as pedras para segurar esse vento…

 

Os panos manchados, com defeito de fabricação, a “carne seca”, sucata da indústria de estamparia – “aos poucos decifrei sua linguagem” –, serviam como suporte para suas criações. Seu profundo contato com o desenho, pensamento gráfico, permitiu grande variação de formas, “seguir os rastros dos desenhos e padrões originais. O escorrido das tintas dissolvidas de maneira aleatória…”.

 

Hoje, o projeto digital, cirúrgico, asséptico, frio, sem erros e mistérios, onde a sombra é separada da luz por camadas de contorno predefinidas. Onde já se viu? Onde estão os calígrafos japoneses? Para estudar a luz, Leonardo penetrava em cavernas escuras, e procurava na obscuridade o desconhecido, o maravilhoso, no profundo estudo da sombra.

 

Que maravilha termos participado de um tempo hippie, da contracultura, das comunidades (ateliês comunitários de artistas, cama/mesa/cozinha – ateliês de fundo de quintal). PAZ (quando possível) e AMOR (sempre): colchão e almofadas no chão, panos indianos e estampados, gravuras de deuses desconhecidos, índios e músicos, Diógenes, São Francisco de Assis, Buda, o Nature Boy, incensos e outros baratos + fauna e flora brasileiras, nossa musa paradisíaca – a bananeira, nosso pavão misterioso –, araras e papagaios.

 

“Nossas roupas comuns dependuradas na corda qual bandeiras agitadas pareciam um estranho festival”.

 

Seus 7 (sete) cabalísticos trabalhos para a deusa Maria Bethânia, seminais, necessários (cenários, trajes, panos e adereços), iluminaram a música brasileira para sempre!

 

“Nossa vida, nosso palco iluminado…”

 

“A Arquitetura me fez amante da terra, da água, do ar, da Lua, da cor, da matéria, do fogo e do som”, também o levou aos desenhos mais belos de cenário, às plantas mais nítidas, às mais límpidas formas, essenciais, e a lecionar de uma forma muito especial, na FAU/USP e na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, para sorte de seus afortunados alunos, assim livres do rigor acadêmico.

 

Quando em nossa mocidade nos encontramos – mercuriais, na encruzilhada paulistana dos anos de 1960 e 1970, em tempos políticos arbitrários de ditadura, quando perdemos amigos, mestres, sonhos –, o tempo era de luta, o tempo era de guerra, como foi o de nossa infância. Estávamos acostumados e lutávamos por um futuro melhor, com os nossos instrumentos de trabalho, pranchetas e maquetes. Nossos soldados eram os cenotécnicos, os carpinteiros, as costureiras, as camareiras, os eletricistas, as bilheteiras. E nossa área de exercício o palco vazio – espaço de liberdade de todas as possibilidades.

 

“O teatro me fez amigo da multidão”, você disse, é essa anônima e poderosa mão de obra que mantém acesa a chama do teatro, há mais de 25 séculos.

 

Cá estamos, seus amigos, parentes, admiradores e um grupo de jovens – essa confraria preparando a festa para mais uma vez falar de você e sua arte, seu legado para o futuro. Somos exceção à impostura do mundo contemporâneo. Aqui ainda estão as crianças abandonadas, nações massacradas, a ignorância truculenta dos dirigentes e o descaso com o planeta.

 

Guardo sua imagem e seu sorriso, suas obras que vi de perto, no fundo de mim, onde moram a saudade e a infância (a esperança e o entusiasmo).

 

primavera
não nos deixe
pássaros choram
lágrimas
no olho do peixe

 

Matsuó Bashô
(1644-1694) tradução de Paulo Leminski

 

Até um dia,

 

Helio Eichbauer

(Texto originalmente publicado no catálogo da Ocupação Flávio Império (São Paulo, junho de 2011, Itaú Cultural, pp. 22-27)

 

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Helio Eichbauer é cenógrafo e figurinista de óperas, balés, teatro de prosa e concertos de música popular brasileira. Realizou mais de 180 trabalhos em 48 anos de profissão e obteve 28 prêmios nacionais e internacionais. Participou de 15 exposições e 11 conferências. Foi professor em instituições de ensino livre e universitárias. Em 2006, realizou uma exposição retrospectiva dos seus 40 anos de cenografia no Centro Cultural Correios, Rio de Janeiro. Estudou em Praga sob orientação de Josef Svoboda. Estagiou no Berliner Ensemble e na Ópera de Berlim. Em 1967, trabalhou no Teatro Studio de Havana, Cuba.

 

Leia também:  Fazer arte com Flávio Império, reportagem publicada no caderno Eu & Fim de Semana do Valor Econômico, edição de 3/6/2011.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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