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Bravo!

Sem moral e sem vergonha [Luis Antônio – Gabriela]

9.6.2011  |  por Valmir Santos

O espetáculo Luis Antônio-Gabriela, do Grupo Mungunzá, evita o sentimentalismo e os estereótipos ao narrar a história de um homossexual estigmatizado POR VALMIR SANTOS

 

Em nome da comoção do público, não é raro o apelo ao sentimentalismo nas obras baseadas em histórias reais. Em Luis Antônio – Gabriela, em cartaz em São Paulo no Galpão do Folias, o diretor Nelson Baskerville e o Grupo Mungunzá corriam grande risco de cair nessa armadilha. O enredo da peça, a jornada de um homossexual estigmatizado da infância à vida adulta, traz em si elementos suficientes para um dramalhão: abusos, surras, doenças. O resultado, no entanto, é uma história desdramatizada, composta de fragmentos que exploram recursos de artes visuais, música e performance. Mais do que relembrar o drama da vida real, o arranjo entre ficção e elementos documentais reforça a contundência do tema e leva os espectadores à catarse – justamente por se despir de julgamento moral ou vergonha.

 

Baskerville cria o espetáculo, de tintas autobiográficas, como uma mea-culpa em relação ao seu irmão Luis Antônio, que a certa altura da vida se mudou para a Espanha e virou a travesti Gabriela. Depois de ter sido abusado por Luis Antônio na infância, Baskerville não teve coragem de revê-lo até sua morte. Apenas uma irmã se encontrou com Luis Antônio/Gabriela; o relato biográfico mistura pontos de vista dela, de Baskerville, de Luis Antônio/Gabriela e um amigo seu. Eles compõem um caleidoscópio de pessoas que dividem o mesmo teto e têm sua intimidade revelada, vidas violentadas e amores brutalizados. A saga começa em Santos, nos anos 1960, e vai até a década passada. Nela, destacam-se momentos como a morte da mãe do diretor após o seu parto, o abuso que ele sofreu e a violência contra Luis Antônio/Gabriela, espancado pelo pai desde cedo.

 

PAISAGEM BORRADA

 

Seguindo uma estrutura épica, os seis atores contam, cantam, tocam e operam luz, em um conjunto que evita a grandiloquência do texto. Os elementos de cena (máscaras, lençóis, bexigas e miríade de recursos audiovisuais) somam-se aos figurinos cor de pele, bandagens em corpos disformes, formando uma paisagem borrada. Que, feito as grossas pinceladas de tintas numa tela, pedem alguma distância para assimilar os contornos simbólicos no todo. Vide as pinturas que despencam dos céus, ao fim do espetáculo, e dividem o espaço cênico com bolsas de soro suspensas pelo cenário, como a diagnosticar indivíduos e sociedade enfermos. Depois da catarse final, a vontade do espectador é voltar para buscar outros ângulos de apreensão de um espetáculo complexo, que não faz concessões em busca de uma conclusão.

 

VALMIR SANTOS é jornalista e pesquisador de teatro,

 

A PECA

Luis Antônio-Gabriela. Texto de Nelson Baskerville, que dirige, e Verônica Gentilin. Com Marcos Felipe, Sandra Modesto, Lucas Beda e outros. Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, Santa Cecília, SP, 0++/11/3361-2223). 5ª a sáb., às 21h; dom., às 19h. Até 17/7. R$ 10 a R$ 30.

 

(Texto publicado originalmente na edição número 166 da revista Bravo!, junho de 2011, p. 48)

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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