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Bravo!

Saudosa maloca futurista [Jaguar cibernético]

2.8.2011  |  por Valmir Santos

Em uma profusão de referências à história da arte e à cultura indígena, o dramaturgo Francisco Carlos reúne em Jaguar cibernético personagens urbanos e de sua Amazônia natal  POR VALMIR SANTOS

 

Há um admirável mundo novo – e mais velho que nosso país – na dramaturgia brasileira. Seu criador é Francisco Carlos, amazonense de 51 anos. Filósofo, dramaturgo e diretor teatral, Carlos vive em São Paulo, para onde traz neste mês sua tetralogia canibal Jaguar cibernético. A cosmovisão de passado e presente é o cerne de sua obra. Em criança, Carlos aprendeu gue brincadeira e teatro só têm graça banhados pela ancestralidade indígena, daí que seus textos possuem estruturas e temas singulares, movem um torvelinho de situações e personagens nativos e urbanos que ruminam em prosa e verso. Jaguar cibernético, com duas das quatro partes apresentadas a cada noite na semana, se baseia no pensamento mítico dos povos da floresta. Contrasta o saber arcaico e a cultura ocidental moderna e define, por fim, o caráter inovador desse poeta desconcertante da cena.

 

As quatro peças são autônomas e correlacionam simbologias animal, humana e divina. O jaguar do título, referência à onça-pintada, deambula pelas histórias com hesitações hamletianas e confere certa unidade à epopeia. O enredo tem sua gênese numa maloca, incursiona pela metrópole e retorna às raízes. Banquete tupinambá, a primeira da série, se passa há 500 anos. Em ritual antropofágico sob uma oca, o protagonista, uma família e um inimigo capturado bebem cauim, o “suco da memória”, e pactuam guerras de vinganças à maneira da tragédia grega. Na segunda, Aborígene em metrópolis, a ação transcorre nos dias de hoje. Um índio troca a aldeia pela cidade e transforma-se em felino virtual.

 

ARTE POP E SURREALISMO

 

A típica profusão de colagens do autor aparece no enredo da terceira peça, que ecoa de Maio de 68 à arte pop. Xamanismo the connection salta para um encontro imaginário de drogados sob mediação de um xamã à espera de um traficante que nunca vem. Já Floresta de carbono – De volta ao paraíso perdido, o desfecho, reverencia sem peia o surrealismo ao materializar a instalação Táxi chuvoso, do catalão Salvador Dali, num calhambeque Chevrolet 1939. Da máquina preta lustrada brotam folhagens e uma Loura. Feito Adão e Eva no éden, ela contracena com outro xamã, até chegar certo Tarzan fascista. No piquenique desse trio, precipitam a voragem e os traumas civilizatórios, e a perda dos papeis da arte e da natureza. Alicerçado em 13 atuadores inventivos e no olhar cinematográfico da diretora de arte Clissia Morais, Francisco Carlos ergue nestes tristes trópicos a sua fábula dionisíaca e pós-apocalíptica. Torna a palavra um ato revolucionário.

 

VALMIR SANTOS é jornalista e pesquisador de teatro.

 

A PECA

Jaguar cibernético. Texto e direção de Francisco Carlos. Com Hércules Morais, Júlio Machado e outros. Sesc Pompeia (r. Clélia, 93, SP, 0++/11/3871-7700). 4a a sáb., às 20h (duas peças alternadas a cada sessão). Até 13/8. R$ 4 a R$ 16.

 

(Texto publicado originalmente na edição número 167 da revista Bravo!, julho de 2011, p. 92)

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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