Reportagem
17.3.2012 | por Valmir Santos
Não era fácil ser filha de Procópio Ferreira em 1941, quando ela estreou como intérprete e contava apenas 18 anos ao contracenar numa peça satírica justo com o então primeiro-comediante do país. Bibi Ferreira foi aplaudida em cena aberta assim que pisou o tablado do Theatro Serrador, na Cinelândia carioca, em 28 de fevereiro de 1941. Ovacionada e com os mimos de flores depositados ao pé da ribalta, ela teve que dizer a que veio, em seguida, no papel de uma dona de estalagem em La locandiera, peça do italiano Carlo Goldoni, do século XVIII, filiada à commedia dell’arte e cujo título foi adaptado como O Inimigo das Mulheres por Gastão Pereira da Silva.
Foi desafiador desvencilhar-se do fardo que os jornais lançaram sobre suas costas depois da estreia em que se “revelou de fato uma artista que é a continuação da glória paterna”, “confirmando as leis do atavismo”, como se leu. Talvez o escritor Austregésilo de Ataíde (1898-1993) tenha sido o mais visionário. “Ela aparece completa, num papel de difícil interpretação, e o faz com tanta simplicidade, perfeição e graça que se diria estar ali não uma aprendiz, mas uma mestra”, escreveu no Diário da Noite.
A carioca Abigail Izquierdo Ferreira olha para aquele início de carreira, 71 anos atrás, com a mesma inerência com que debutou quando era moça, escudada por Procópio Ferreira (1898-1979) e acostumada aos palcos desde os 24 dias de vida, quando substituiu uma boneca desaparecida nos bastidores de um espetáculo em que atuavam o pai e a mãe, a corista espanhola Aida Izquierdo.
Prestes a completar 90 anos, em 10 de junho, a atriz e cantora Bibi Ferreira põe suas histórias pessoal e artística em ressonância ao conversar com o Valor sobre o próximo espetáculo, batizado tão somente com seu primeiro nome e escalado para reabrir no dia 27, Dia Internacional do Teatro, o Teatro Tereza Rachel em Copacabana, zona sul do Rio. O agora rebatizado Theatro NET Rio é o mesmo edifício onde estreou em dezembro de 1975 a histórica montagem de Gota d’água, dirigida por Gianni Ratto e escrita por Paulo Pontes e Chico Buarque, que verteram a tragédia Medeia, de Eurípides, para o cotidiano miserável de um conjunto habitacional brasileiro.
Bibi reputa ao papel da lavadeira Joana/Medeia um dos momentos mais profícuos da carreira, desenvolvendo plenamente seus potenciais de corpo e voz ao lado de Oswaldo Loureiro, Luiz Linhares, Roberto Bonfim, Bete Mendes, Sonia Oiticica e outros. Voz que, afinal, se tornou o instrumento de trabalho por excelência da atriz e cantora, como dará prova o show Bibi, uma compilação de composições clássicas popularizadas por Edith Piaf e Amália Rodrigues, além do repertório brasileiro a ser completado por Noel Rosa, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ela estará acompanhada por uma orquestra de 27 músicos, sob a regência de Flavio Mendes, parceiro musical há 28 anos.
Fundado em 1971, fechado em 2001 e transformado em igreja evangélica até 2008, quando passou a ser locado para ensaios de produções musicais, o espaço localizado na sobreloja do Shopping Cidade Copacabana foi arrendado em 2011 por dez anos. Os irmãos e produtores culturais Frederico e Juliana Reder, da Brainstorming Entretenimento, alegam razões contratuais para não revelar o investimento no Theatro NET. Os idealizadores querem reavivar o endereço na agenda cultural, a começar por reeditar alguns nomes que já passaram por lá, como Gal Gosta e agora Bibi. Serão duas salas de espetáculos, uma com 789 lugares e outra com 200.
Quando as tradicionais cortinas vermelhas se abrirem no palco principal, Bibi Ferreira ocupará o centro para irradiar seu canto dramático que já se pronunciava desde a brejeira comediante estalajadeira de 1941, com sua “dicção perfeita, voz de tonalidades sempre gratas, inflexões convincentes sempre”, como comentou o jornalista Mario Nunes no Jornal do Brasil.
Bibi não gosta de falar longamente ao telefone por motivos óbvios: preservar a qualidade orgânica do som produzido pelas vibrações das pregas vocais sob pressão do ar que percorre a laringe. Em quase uma hora, porém, essa mulher que pede para não ser tratada por senhora – tem uma filha, dois netos, dois bisnetos e a experiência de cinco casamentos (entre eles, com Paulo Pontes) -, essa atriz se permitiu uma prosa generosa com a reportagem. A ponto de interpretar uma fala de Gota d’água, para deleite do interlocutor, que imaginava sua Joana entrando em cena lá pelos 35 minutos de peça, vestida de preto, em silêncio, caminhando lentamente, ombros caídos, deprimida, mas com o rosto altivo e os olhos faiscando, conforme a rubrica dos autores. Isso antes de soltar o vozeirão.
Valor: Costuma ser mais conhecido o forte vínculo artístico com seu pai. Fale-nos de sua mãe, que também era artista e tinha nome de ópera, Aida Izquierdo Ferreira.
Bibi Ferreira: Ela era corista de teatro, uma profissão que não tinha muito relevo à época do teatro de revista. Atuou bastante junto à companhia espanhola Velasco. Era uma moça muito bonita, tinha uma cara maravilhosa, fazia muito sucesso. Uma pessoa muito exigente comigo. Já eu, na minha mocidade, era mais largadona, não ligava para as coisas, não me arrumava suficientemente bem para ir aos lugares, como nos bailes aos sábados. Uma vida ingênua, pode-se dizer pacata. Pois Aida foi uma grande mãe, me fazia estudar muito no colégio durante a semana e ainda tinha bons professores de idioma, de piano. Não me deixava me divertir muito, a coisa era na base do estudo [entre 4 e 14 anos participou de óperas e balés do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio]. Tive uma juventude bem ferrenha. Aprendi a ser muito disciplinada, sou exigente com meu trabalho e com as pessoas que estão ao meu lado. É inato, não tenho dificuldades quanto a isso.
Valor: Vem daí seu apuro vocal?
Bibi: Eu agradeço eternamente a Deus, a cada instante da minha vida, por ter me dado essa voz, por me conservar essa voz até esta idade. Você não me pega numa voz boa agora [17 horas] porque acabei de levantar, mas tenho uma voz precisa, uma dicção que me permitiu encarar até árias em algumas óperas.
Valor: Qual é a expectativa de retornar ao antigo Tereza Rachel?
Bibi: O agora Theatro NET é o lugar onde me reencontro com coisas muito bonitas que fiz, entre elas a estreia universal de “Gota d’Água”. Foi um espetáculo difícil, grandioso, com todas as danças e cantos, mas resultou uma experiência muito linda, muito rica. Guardo na memória esse trabalho, talvez uma das coisas mais belas que já fiz, principalmente por ser uma obra brasileira. Em plena ditadura militar, era muito bom poder dizer algumas verdades, principalmente em relação às queixas do povo. Gota d’água revelava os lados sombrios e trágicos da realidade por meio de Joana e seus vizinhos. Havia o conteúdo social e político, mas sobretudo a qualidade literária do que eu dizia. Era uma maravilha mandar para a plateia aquele texto glorioso, vigoroso, nada transparente, desejando, enfim, a grande liberdade da qual no momento estávamos degolados. Lembro-me que o Paulo e o Chico iam constantemente a Brasília, a censura cortava um pouco aqui, outro acolá. O Paulo e o Chico viviam uma situação horrorosa, cortavam a ponto de não terem mais nada a dizer, o texto ficava aguado. Até que, passado certo tempo, conseguiram emendar mais ou menos aquelas partes e, ainda assim, criaram uma obra realmente maravilhosa. Você quer ouvir um trecho? Ainda me lembro [interpreta os versos dramáticos da passagem em que Joana despacha os filhos com bolinhos de carne envenenados para a noiva do ex-companheiro Jasão, iguaria que acabam ela mesma e a prole comendo]: “Eles pensam que a maré vai mas nunca volta/ Até agora eles estavam comandando/ o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,/ recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta/ e tão forte quanto eles me imaginam fraca./ Quando eles virem invertida a correnteza,/ quero saber se eles resistem à surpresa,/ quero ver como eles reagem à ressaca”. Os solilóquios são todos muito bonitos. “O pai e a filha vão colher a tempestade/ A ira dos centauros e de pombagira/ levará seus corpos a crepitar na pira/ e suas almas a vagar na eternidade”. Há uma força incrível nessas palavras. Eu sempre canto esses dois fragmentos em meus shows e os emendo à canção que dá nome à peça.
Valor: No novo show, você será acompanhada por 27 músicos. Está familiarizada com orquestras?
Bibi: Cantar com orquestra é sempre difícil. Ela não acompanha, é você que acompanha ela. Não é nada fácil o entrosamento entre cantor e conjunto, é uma coisa séria, há muita apreensão. Flavio Mendes, por exemplo, é um regente que me dá muito apoio, conhece muito bem a partitura, um estudioso ao lado do qual me sinto muito segura.
Valor: Após a Joana de ‘Gota d’água’, outra atuação tida como memorável se deu em ‘Piaf – A vida de uma estrela da canção’ (1983), de Pam Gems, dirigida por Flávio Rangel. Vê em sua trajetória alguma correlação com a daquela também atriz e cantora francesa?
Bibi: Eu não tenho nada a ver com a Piaf, com o temperamento dela, com a maneira como ela levou a vida e a carreira. Não temos nada em comum. Eu venho de um ambiente familiar, como posso dizer, muito seleto. A Piaf é de um ambiente muito boêmio, sem educação nenhuma. Eu tive um cuidado imenso com minha educação. Aos 12 anos, Piaf estava cega por causa de tanta sujeira nos olhos, era uma pobre menina a quem ninguém ligava. Foi um milagre essa criaturinha se recuperar e fazer arte, apesar da vida desorientada. Agora, quando piso o palco, aí sim tenho que entrar nessa personagem de forma muito marcada, desenhada. Ela teve muitos rasgos na vida, um temperamento muito rico, um manancial para quem vai interpretá-la. Sabe que até hoje, em todo show, o público pede uma canção de Piaf? Posso estar fazendo temporada só com os fados de Amália Rodrigues, por exemplo, aquela prosódia castiça do começo ao fim, e de repente, pode contar, alguém pede Piaf. Isso acontece sempre, independente do roteiro, por isso vou preparada para o final [bisa invariavelmente com os clássicos La vie en rose ou Non, je ne regrette rien]. Vivo há mais de 30 anos à custa dela.
Valor: Como a jovem Bibi se sentiu estreando profissionalmente numa comédia de Goldoni e ao lado do pai, um comediante de mão-cheia?
Bibi: Um dia, meu pai pediu licença à minha mãe para saber se eu poderia tentar estrear como artista no teatro. Minha mãe disse que sim, inclusive preocupada em ter o pai e a filha mais juntos. A estreia aconteceu no dia 28 de fevereiro de 1941. Eu fazia o papel cômico de Mirandolina num clássico da commedia dell’arte, o mesmo que a italiana Eleonora Duse [1858-1924] representou. Papai teve sorte porque a filha realmente tinha condições de ser artista. Não é só querer, requer muita coisa, principalmente a voz. Tem que ter uma voz forte no teatro para ser ouvida na última fila com naturalidade, sem microfone. Isso é muito difícil. Alguns nascem com mais facilidade para fazê-lo, outros não. Falar de modo afável, cordial, e 800 ou 1.500 poltronas depois te ouvirem, isso só se alcança com a voz bem colocada. E naquela época eu vinha de estudar dança no Municipal, tinha facilidade para a movimentação cênica. A peça La locandiera se passava na Idade Média, requeria maneirismos diferentes de hoje, e nisso a dança facilitou muito. Além de tudo, tinha papai me ajudando, me dando instrumentos para o ofício. E tinha minha mãe que me punha para estudar, para ler o texto no original.
Valor: Considera o palco um território sagrado, como se diz?
Bibi: Não vejo palco como território sagrado, acho que é um espaço natural. É minha profissão, eu preciso daquilo como um jornalista precisa de uma máquina de escrever ou de um computador. Isso serve para o médico, o advogado e todas as demais profissões. Todo ser humano tem uma ligação com o lá em cima [o divino], mas não é só isso. É uma ligação também de obrigação, de fazer seu trabalho correto, com ética, e não levá-lo na valsa. Daí a importância de ensaiar, de estudar muito por respeito a esse consumidor que é único ao comprar o produto sem ter assistido antes: o público de teatro. O palco é meu aparelho, é uma coisa muito séria, precisa funcionar muito bem. É difícil atingir 2.500 lugares da plateia sem microfone. O palco é um lugar ao qual a gente tem que se entregar inteiramente. A memória é outro aspecto importante, a concentração. Você tem que se distanciar de si própria; deixar você no camarim e entrar em cena como personagem. A capacidade de memorizar o texto ainda hoje é uma dádiva que agradeço todos os dias, ao mesmo tempo em que me dá muito medo porque a memória pode falhar. Eu trato de estudar muito para ver se aquilo fica no subconsciente. É daí que sai com mais facilidade a letra ou o texto. No inconsciente, você fica procurando, é uma luta muito grande com a palavra, é muito arriscado.
Valor: Você já esboçou ou tem vontade de escrever uma autobiografia?
Bibi: Não. Não tenho vontade de colocar minhas memórias no papel. Não acho graça escrever. Sabe por quê? Acho que escrever é um dom. Não é chegar, pegar o bloco e começar, tem que saber escrever. Eu sei o bê-á-bá do que aprendi no colégio. Na verdade, eu já tentei escrever um pedaço da minha vida. Certa vez, ganhei um caderno e me pus a escrever uma cena da minha vida em criança. Saiu tão mal…
Valor: Do que se tratava?
Bibi: Era sobre o começo da minha vida. Morava em Copacabana, a polícia bateu na casa de meu pai e minha mãe, que estavam apavorados, desesperados, e pediam ao policial para procurar a filha que tinha sido roubada, coisa assim. Os policias foram à procura de mim e ninguém tinha me sequestrado coisa nenhuma. Eu tinha apenas 5 anos e saí de casa sozinha. Atravessei a rua Tonelero, onde a gente morava. Atravessei a avenida Nossa Senhora de Copacabana. Alcancei a avenida Atlântica e segui a pé pela orla até o Posto 6.
Valor: Após testemunhar a modernização do país em vários campos, acha que a cultura e a arte são mais valorizadas nos dias atuais?
Bibi: Eu acho que o Brasil não conhece o Brasil. As gerações passadas não têm ideia do que era o teatro de revista, por exemplo. Meses atrás, fui falar com o Eike Batista, levei um “book” muito benfeito para ver se ele me patrocinava um grande espetáculo de teatro de revista para mostrar a essa gente de hoje. Fui gentilmente recebida por uma funcionária dele que explicou que a prioridade do empresário é patrocinar projetos na área da saúde, da medicina, e não projetos artísticos. Eu compreendo, mas tinha vontade de mostrar para o público não uma revistainha, mas uma criação à altura, com uma grande orquestra, muitas coristas, muito luxo em cena. Acho importantíssimo o movimento dos musicais da Broadway, a qualidade com que eles estão sendo feitos no Rio e em São Paulo, mas eu queria mostrar um teatro que já existiu e está extinto. Era um teatro muito nacional, com as características todas brasileiríssimas, que era muito divertido e crítico, exigia investimento grande. Fazer teatro de revista com pouca gente não é o que eu gostaria de mostrar, não era assim nos tempos da praça Tiradentes no Rio.
Valor: Você fala desse projeto como se fosse um sonho.
Bibi: Eu não tenho sonhos. Nunca tive sonhos. Só tenho sonhos quando durmo, e graças a Deus eles são muito lindos. Não tive pesadelos. Não tenho tempo de sonhar, sou uma profissional que tem que pensar sempre o que o povo vai querer. Vivo em constante função de agradar à plateia. Meu trabalho é saber de canção em canção, de poesia em poesia, se o público vai gostar. Vejo as coisas com mais simplicidade, com base na realidade. Eu só vivo pensando no próximo espetáculo. Portanto, se isso tudo for sonho, então eu sonho…
Valor Econômico, 16, 17 e 18/3/2012, Caderno Eu & Fim de Semana (pp. 18-21)
Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.