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Crítica

Bogotá/FIT-BH – La Maldita Vanidad

26.6.2012  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Valmir Santos

Com pouco mais de três anos de vida, a companhia La Maldita Vanidad (a maldita vaidade), autonomeada “laboratório teatral colombiano”, conquista respeito em Bogotá onde o teatro de pesquisa deita raízes por meio de núcleos que historicamente honraram essa modalidade, como La Candelaria, Varassanta e Mapa Teatro.

A irreverência crítica das cenas corresponde ao perfil jovem dos criadores com franca e consistente disponibilidade para correr riscos. As peças do diretor e autor Jorge Hugo Marín, de 31 anos, esfregam realismo e naturalismo de precariedade aparente na interpretação, no desenho cenográfico. No fundo, revelam conteúdos explosivos, estocadas na sociedade colombiana radiografada com humor e sem piedade quanto à falsa moral, seja ela cívica, religiosa ou familiar.

Em abril passado, o Tetrojornal assistiu à segunda peça da trilogia Sobre algunos asuntos de familiaLos autores materiales (2010), durante o Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá. E à primeira delas, El autor intelectual (2009), durante o recém-terminado Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte (FIT-BH).
O conceito de autoria nos títulos implica atos de transgressão, explícitos ou dissimulados, além de reforçar a assinatura singular desse projeto artístico destinado a ocupar espaços diminutos não teatrais para algumas dezenas de espectadores.

Em El autor intelectual , a ação transcorre numa sala do casarão onde o grupo ensaiou, num dos bairros bogotanos, e lá permaneceu em primeira temporada – trata-se da própria casa de Marín. O público é postado atrás de uma vidraça inteiriça, transparente, como se avistasse, através da janela, a história dos irmãos e cunhados reunidos numa sala de estar, entre sofás, televisão e quadros na parede, para saber com quem ficará a matriarca que está debilitada e requer cuidados. Prostrada no quarto de fundos, ela só aparecerá na sequencia final diante de uma atitude extrema.

Marín é hábil na concisão dos diálogos e na captura da linguagem como subtração. O que não se vê ou entreve, e o que se entrediz, são essenciais às narrativas, e isso apesar do jogo voyeur que o dramaturgo e diretor propõe ao interlocutor. O processo de edição é influenciado pelo cinema, ponto de partida para as duas peças: o filme Esperando a carroça, do argentino Alejandro Doria, serve a El autor intelectual assim como Festim diabólico, do inglês Hitchcock, a Los autores materiales.

Nesta, público e atores compartilham o ambiente cênico de uma cozinha. Ou seja, seguimos dentro de uma casa, agora em outro cômodo. É dessa perspectiva, uma cena intimista, que acompanhamos a desesperada tentativa de três rapazes de ocultar o cadáver do velho dono da pensão que alugam. A madrugada macabra já se foi e a empregada acaba de chegar para a faxina, trazendo a tiracolo o seu filho. Nem as tiradas de humor negro dissolvem a tensão no ar.

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A determinação técnica para prender o espectador remete à qualidade da cena independente argentina. Notadamente o registro de atuação de Ella Becerra, na pele de faxineira e, depois, de nora, dosando rompantes físicos e fragilidades nos dois casos.

A dramaturgia de Marín cria um jogo absurdo de falso ou verdadeiro, de desmontagem de um crime, de violência estilizada sem uma gota de sangue – apesar dessa pista estar lá sugerida. Não precisa ser explícito quando se está em solo colombiano cercado pelo medo, as pelejas entre polícia, exército e o narcotráfico, coquetel que algumas regiões brasileiras conhecem bem.

Marin constrói um universo de referências cinematográficas ou literárias (a pulp fiction pode ser um meio termo) sem forçar nos limites das respectivas estéticas e sublinhar uma assinatura. Metido nesse espaço não convencional, coautor em meio às presenças dissimuladas, o público não perde de vista, no entanto, o teatro do instante, reagindo, regurgitando de modo realista o que esses homens e mulheres são capazes de fazer com aqueles que lhes são próximos nas dependências domésticas nada pacificadoras.

Os “autores” dos títulos desaparecem na terceira perna da trilogia, Cómo quieres que te quiera (2010), texto no qual o caráter familiar é mais coerente: durante a festa de debutante da filha, fica claro como a estabilidade financeira e comunitária dos pais reflete a condição de “narcoemergentes”, cúmplices com o submundo do crime do portão de casa para fora.

Essa terceira peça como que abandona a casa e vai para o espaço público com pitada de privado. Um salão para a festa de debutante com portas para a rua, abertas de quando em quando ao fundo.

O patriarca não poupa recursos para atender aos caprichos da aniversariante. Só que a preparação da cerimônia concentra um microcosmo dos arranjos, o pedágio para se chegar a muitos caminhos corrompendo-se. É desse lugar que, mais uma vez, os atores da companhia La Maldita Vanidad erguem o espelho sem retoques, espantando qualquer ameaça de inércia em quem faz ou frui suas cenas de fôlego.

No Brasil, quem conferiu a trilogia na íntegra foram os espectadores de Fortaleza durante o Zona de Transição – 1º Festival Internacional de Artes Cênicas do Ceará, realizado de 15 a 24 de junho. As peças passaram pela capital austríaca Viena, dois meses atrás, e estão programadas para voltar ao Brasil em setembro, durante o 2º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos (SP).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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