Reportagem
14.7.2012 | por Valmir Santos
Foto de capa: Desconhecido
Em criança, Vincent e o irmão quatro anos mais novo, Theodorus, costumavam brincar num moinho, passear à beira do rio, correr de mãos dadas no meio do trigal. A natureza os conciliou, a despeito da bifurcação na vida adulta desses holandeses do século XIX: o pintor invendável e o marchand bem-sucedido. É sob a perspectiva dessas existências imbricadas que Fernando Eiras incorpora as múltiplas vozes de O outro Van Gogh, primeiro monólogo em 36 anos de carreira, 55 primaveras.
A temporada no Teatro Poeira, no Rio, a partir de amanhã, mostra, de um lado, Vincent Van Gogh (1857-1891), o artista fracassado aos olhos da sociedade, incapaz de constituir família, ateu, para desespero do pai protestante, e enamorado de uma prostituta com a qual teve uma filha. A burguesia tampouco comprava seus quadros porque “escuros demais”, não combinavam com a mobília, como ironiza Theo Van Gogh (1853-1890) do outro lado gangorra.
O homem de negócios surge corroído pela culpa, um cavalheiro tombado pelo peso da hipocrisia, arrependido de não ter se engajado mais à sublimação artística do irmão que se deu um tiro no peito aos 37 anos, transitando de louco em vida a gênio na posteridade – mestre do pós-impressionismo em rejeição ao naturalismo.
A dramaturgia de Mauricio Arruda Mendonça usa como fonte o livro epistolar Cartas a Theo, além de três biografias de Vincent Van Gogh e de filmes inspirados na relação dos irmãos. “É um texto que fala ao coração do homem contemporâneo, marcado por indiscutível atualidade e compaixão”, diz Mendonça.
O espetáculo não chega a ser uma biografia do pintor porque entranhado pelo irmão feito luz e sombra. A peça abre justo com Theo narrando que Vincent certa vez lhe perguntara: “Qual é a cor da minha sombra?”. Ao que ele responde: “A sua sombra é verde e vermelha”. As cores do perigo, deduz.
O carioca Fernando Eiras define Vincent como um personagem de traços trágicos, de fazer par com a complexidade da trinca francesa formada pelos poetas Baudelaire, Rimbaud e Artaud, este o autor do breve ensaio Van Gogh, o suicida da sociedade (1947). O texto repudia o diagnóstico médico quanto à esquizofrenia “do tipo degenerado” que acometeria o pintor.
Após visitar uma exposição com as obras dele, Artaud arremata: “Não, Van Gogh não era louco; ou então ele o era no sentido desta autêntica alienação que a sociedade e os psiquiatras querem ignorar, sociedade que confunde escrita com texto, ela que tacha de loucura visões exorbitadas de seus artistas e sufoca seus gritos no papel impresso”. Artaud dizia escrever para analfabetos, enquanto Van Gogh pintava para os simples de espírito.
“Não me considero um ator propriamente virtuoso, pelo menos não é esse o objetivo. Escolhi o Theo porque ele não tem o refletor apontado para si. O refletor dele é voltado para o outro”, afirma Eiras. Nesse exercício de alteridade, o suposto protagonista, Vincent, não está propriamente em cena, mas é evocado a todo instante por aquele que lhe foi uma espécie de tutor.
A ação transcorre num sanatório, onde Theo está internado, diagnosticado com os mesmos sintomas da doença mental que perseguira o irmão, a necrosífilis, uma decorrência de casos mais avançados da sífilis não tratada após muito tempo de infecção. Como se não bastassem o abalo pela morte de Vincent, seis meses antes, e os encargos pelo sustento da família. Daí seu estado delirante.
Diretor conhecido pela poética visual e sonora de suas montagens, preocupado com o diálogo ator/ espaço, cofundador da premiada Armazém Companhia de Teatro, Paulo de Moraes também responde pela cenografia de O outro Van Gogh. E opta por recursos mínimos: uma tela branca banhada de quando em quando pela luz desenhada por Maneco Quinderé. “O teatro é o lugar do invisível. Vamos preenchendo-o com a nossa fé”, diz Eiras. Essa narrativa de memória é povoada ainda por um tio, uma prima, um pastor e a mulher Christine, de Vincent, que devotava um carinho rude ao pintor atormentado, acostumado a vestir macacão azul de operário, chapéu de palha, empunhando cachimbo na boca e carregando cavalete nas costas.
Vindo de elogiada atuação em In on It, direção de Enrique Diaz que lhe valeu o Prêmio Shell de Teatro fluminense de ator, em 2010, Eiras afirma não abdicar da centelha do humor mesmo quando imerso numa “sonata sobre um caso trágico”, como define a peça.
O outro Van Gokgh
No Teatro Poeira (rua São João Batista, 104, Botafogo, RJ, tel. 21/xx 2537- 8053). De quinta a sábado, às 21h30. Domingo, às 19h. R$ 40 e R$ 60. De 29/6 a 19/8
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.