Crítica
Em criança, Ety Fefer observava seu pai criando garatujas ou desenhos nas toalhas de papel que forravam as mesas em restaurantes. Aqueles traços soltos esboçavam rostos, troncos, membros disformes, seres que o imaginário da filha judia logo batizou de Los grumildos. Mais de três décadas depois, a artista peruana olha para trás e vê como sublimou seus monstros interiores – e fez espelhar os nossos – em bonecos moldados em plasticina (matéria plástica constituída principalmente por argila), movimentados por fios de nylon acoplados a engenhocas mecânicas tão rústicas e artesanais como a fisionomia e a aura singulares desses habitantes de um mundo em miniatura, uma cenografia barroca sob penumbra, neon e luzinhas coloridas.
No Mirada, esse universo é transportado para uma sala expositiva montada durante todo o festival especialmente na área de convivência do Sesc Santos. Uma instalação feita de sedução e assombro. O visitante adentra para perscrutar os dois ambientes vintage da família – ou seria legião? – grumilda, demônios angelicais dispostos em redomas de vidro, abstratas, ou nos cantos de um bar, nos cômodos de um bordel recriados pelas mãos de um marceneiro, sempre em conjunção com Fefe. Geralmente, as feições da face são humanas, mas os braços e pernas são como que extensões de caranguejos, escorpiões. E às vezes com direito a adereços, figurinos. Gestos e atitudes.
Hombre pulpo, de Fefer, um dos bonecos confeccionados em plasticina e movidos a motor imperceptível ao visitante – foto: Augusto Román
Vislumbramos em cada janela a solidão, a sensualidade, a perversão, o devaneio, a lascívia, a dor e a delícia de viver, tantos os sentimentos transmitidos por essas figuras de olhos penetrantes. Reparamos: nos mais tristes dos seres há sempre um brilho, um lampejo de que ninguém veio à vida a passeio. Talvez aí um dos subtextos: reconhecer em nossos monstros, metafóricos que sejam, a capacidade de construir diálogo consigo. Um acordo intransferível que supere as chibatadas judaica e cristã, por exemplo.
A também peruana Thais Martin de Rossi, filóloga, romancista e uma espécie de braço teórico de Los grumildos, já que Ety Fefer é pura intuição e ímpeto no manejo de suas criaturas – não cessa de zelar por elas, como convém ao instinto maternal -, enfim, Rossi evoca os arquétipos junguianos para sugerir as territorialidades dessa artista que, não é forçado dizer, salvou-se pela arte com que ancora a existência. Aliás, Rossi realizou em Santos a oficina Saca tu demônio calcada nas criações da colega. Outra influência importante tem sido a obra do pintor compatriota José Tola de Habich, com quem Fefe compartilha experimentos há uma década.
A intimidade aflora na instalação. É como se Fefer abrisse seu quarto em tons rosa e vermelho aos olhos do mundo, brincasse de casinha com meninas e meninos surpreendidos com os bichinhos que não são de pelúcia, ao contrário, muitos deles resultam literalmente escrotos, com seus falos saltando ao primeiro plano. Devassos e telúricos, passam ao largo do voyeurismo torto dos reality show. Estão mais para o freak show dos velhos circos que exibiam atrações bizarras. Aqui, o horror é subcutâneo, gera estranhamento e identificação. Não por acaso, é possível sentir-se em casa, sentar-se no sofá – ou divã? -, assentar nesse admirável inferninho novo embalado por uma trilha sonora diversa e convidativa. Quem passa ligeiro ou sorve um vinho não deixa de se entregar aos esquisitos e “exquisitos” (delicados, graciosos em espanhol) Grumildos.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.