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Crítica

Fenart – Algo de triste no porto seguro da alegria

9.8.2012  |  por Maria Eugênia de Menezes

O artista popular enseja um pouco daqueles versos de Vinicius de Moraes: plasma alguma coisa de triste no porto seguro da sua alegria. Na embolada ou no cordel, por exemplo, cabem dolências. No circo, a figura do palhaço costuma ser o fiel da balança. Quando não está lá, ao intérprete de rosto lavado resta não cair no maniqueísmo fácil. O ator Chico Oliveira assume esse desafio em Incelência, o espetáculo solo no qual atua sem maquiagem ou nariz-vermelho, imerso em referências da cultura e da crença populares. Margem também para o universo do picadeiro sem lona, a banca que o artista monta em praças para compartir suas histórias desde os tempos medievais da humanidade.

A voz em primeira pessoa é de Seu Olímpio, o artista que, à maneira do circo-teatro, passeia pelos gêneros (o drama, o melodrama, o cabaré, etc.), mas alarga a noção de gênero para a própria sexualidade. Incorpora uma companhia de bonecas de plástico, de pano, pequenas, em miniatura ou grande, uma delas, de chita, feito uma nega maluca com quem ele dança.

São seres inanimados que a narrativa e a cena convertem em mulheres com quem cruzou em sua vida. Ou ancora na boneca que tanto pediu em criança, menino, e foi castrado por uma tia até tornar-se adulto e atualizar com plenitude o impulso daquele desejo imberbe.

O percurso parece simples, mas revela-se complexo, no melhor sentido, o entrecho da dramaturgia de Oliveira. A direção de Andrea Macera, também ela atriz e palhaça de ofício, navega na mesma sintonia: a da menor grandeza. O espetáculo dosa o que é de domínio popular, o cancioneiro, os adereços, o figurino severo na camisa abotoada até o pescoço e a calça até o umbigo. Um jeito capiau, sertanejo de ser, determinante na empatia desse narrador que, aos poucos, apresenta outras camadas. Há uma solidão inclemente colada à singeleza desse homem.

Em certos momentos, Oliveira, que é fundador da Companhia do Rosário, se ressente de virtuosismo na postura corporal. Uma tensão que pode ser tributária do esforço pela mimese. Quando isso ocorre, sem prejuízo da plataforma imaginária do espetáculo, a sensação é de que o Seu Olímpio se distancia na representação.

Durante a sessão em que estavam presentes algumas crianças – cativadas pelo contador de histórias e as bonecas que até viram gente grande – ficou demonstrado como Incelência, montagem em circulação pelo menos desde 2008 -, consegue estabelecer um arco de subjetividades e firmar elo com o repertório de cada um dos espectadores. Um leque aberto ao cômico e ao dramático de que são feitas as melhores ou mais tristes lembranças, como aquelas que Seu Olímpio revive e vela toda vez que encontra o respeitável público.

Em João Pessoa, colaboração para a coordenação de teatro do XIII Festival Nacional de Arte

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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