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Reportagem

À luz dos arquivos

10.9.2012  |  por Valmir Santos

No seminal estudo Mito y Archivo – Una teoría de la narrativa latinoamericana (1), o mexicano Roberto González Echevarría aproxima os primeiros escritos sobre a região (legado daqueles que testemunharam criminosos e conquistadores, séculos atrás) dos procedimentos de criação verificados no boom da ficção latino-americana a partir da década de 1960. Os romancistas como que rastreiam conflitos, mitos e traumas. Colaboram para gerar uma imagem literária do continente, em pleno período das conflagrações institucionais que maculam as democracias de turno. Os primeiros indícios saltam das páginas de Os passos perdidos, do cubano Alejo Carpentier, uma imersão arqueológica na Amazônia indígena, contrastando o modus vivendi daqueles povos e o dos ocidentais. Já em O jogo da amarelinha, do argentino Julio Cortázar, despontam os capítulos que podem ser rearranjados, textos que lançam mão de recortes de jornal como fonte. Em Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, a noção de arquivo funda o romance, enquanto em O general em seu labirinto, do mesmo autor, a figura central é o general venezuelano Simón Bolívar, que encabeçou as guerras de independência da América espanhola, um livro consubstanciado por um numeroso acervo de cartas.

E por aí vão os palimpsestos históricos, estéticos e estilísticos de um tempo em que os escritores eram impelidos pelas tensões sociais em âmbitos ditatoriais e revolucionários sem que os temas oprimissem a experimentação formal. Em entrevista recente a um jornal brasileiro (2), inspirada pela reedição da obra de 1990, o ensaísta Echevarría declara desconfiar que sua mente processa de modo mais poético que teórico, quando recorre à expressãochave de seu livro, pois gostaria de acreditar ser inspirado pela etimologia da palavra archivo, mistério, origem, que por sua vez está entranhada em architectura, construção que contém coisas.

Sin títiulo - técnica mixta, do grupo peruano Yuyachkani - Elsa Estremadoyro

Sin títiulo – técnica mixta, do grupo peruano Yuyachkani – Elsa Estremadoyro

Um conjunto significativo de espetáculos deste 2º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos expõe um eixo documental que, a um só tempo, corresponde e reinventa as estratégias dos romancistas aninhados sob a rubrica do realismo mágico, de tintas surrealistas. Estão em pauta o arquivo e a memória. O narcotráfico, o totalitarismo e a corrupção, por exemplo, são tópicos determinantes para um segmento da produção que instaura dialética e sopesa outras latitudes da linguagem, como a erosão da fábula e do estatuto do personagem. Criações tangenciais ao teatro documentário, aquele que “não aspira a reproduzir exatamente um fragmento do real, mas a submeter os acontecimentos históricos e atuais a uma explicação estrutural, recorrendo para isso à formalização radical”, como define o respectivo verbete em dicionário organizado pelo francês Jean-Pierre Sarrazac (3). E são múltiplas as gradações históricas, políticas e sociais nas abordagens do real.

Os núcleos mexicanos Grupo Teatro Línea de Sombra, El Milagro e Carretera 45 Teatro, o paraguaio Grupo Hara Teatro e o peruano Grupo Cultural Yuyachkani vão aos fatos bem como os analisam e os dissociam do real e os sintetizam dialeticamente como memória em cena. Aproximam-se de um “documental imaginário”, como alguns pesquisadores da fotografia contemporânea definem um registro que tanto documenta a realidade como também pode inventar livremente um mundo paralelo ficcional, injetando doses consideráveis de subjetividade (4).

A obra Sin título, técnica mixta, do Yuyachkani, é emblemática do dispositivo arquivo na conjunção tempo e espaço. Adentramos um galpão cênico, que sugere um museu e os “quadros” e “esculturas” redivivos remontam à historiografia peruana de 1879 a 2000. A instalação cênica já diz a que veio no marco de sua estreia, em 2004, no bojo da Comisión de la Verdad y Reconciliación (mecanismo que esmiúça violações aos direitos humanos e cujo congênere o Brasil vê acionado somente há cinco meses). O grupo revolve o passado do país e sua própria autobiografia, sua identidade artística, modulada pelo diálogo com a tradição, e a busca por caminhos desconhecidos; lá se vão mais de 40 anos de atividades. Artes plásticas, performance e teatro são entrelaçados num território de invenção e reinvenção permanentes.

Rememorar é também o lema do Hara Teatro em Cenizas, que integra o Proyecto Intercultural Tierra sin Mal. O espetáculo adota o ponto de vista da mulher para falar da sobrevivência e da resistência do povo paraguaio durante a Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra Grande, mais conhecida por aqui como Guerra do Paraguai (1864-1870), quando Brasil, Argentina e Uruguai devastam uma nação desenvolvida, para os padrões do século XIX na América do Sul.

Contexto mais premente mobiliza o Grupo Teatro Línea de Sombra em Amarillo: a migração na fronteira do México com os Estados Unidos. O assunto é explosivo e a denúncia vem a reboque da inventividade poética transbordante na dramaturgia e na cena, que dá margem ao teatro físico, o vídeo e a dança, bem como a outras variantes.

A violência é olho por olho, dente por dente em Los asasinos, fruto da união dos agrupamentos El Milagro e Carretera 45 Teatro. Vítimas e algozes são demarcados pela vingança, pelo achaque, pelas dívidas, pelas disputas de território. Uma caverna, muquifo nos arrabaldes, serve como metáfora ao alijamento das mínimas regras de cidadania, uma espécie de tribunal paralelo. A intolerância e a barbárie no subterrâneo do tráfico e na superfície da sociedade mexicana estão nas bases do pensamento desses criadores.

Opção declarada pelo realismo e inclinação para o naturalismo, vertentes tratadas de soslaio no teatro de pesquisa, porque seriam tributárias de um teatro burguês ou afins, eis os parâmetros daquela que, surpreendentemente, é uma das mais jovens companhias desta programação, a colombiana La Maldita Vanidad. Sua trilogia Sobre algunos asuntos de família constitui um sopro de vitalidade pela coragem temática: a violência dissimulada ou explícita, intramuros, como espelhamento dos níveis institucionais daquela convulsiva sociedade e seu embate com o narcotráfico. Pela investigação de dramaturgia própria (a economia dos silêncios em diálogos curtos, incisivos, bem-humorados, irônicos, terrivelmente tristes). E pela adoção de espaços não teatrais (cômodos de uma casa, com a paradoxal intimidade do espectador cúmplice, oferecendo uma lente de aumento sobre o seu papel voyeur). Esse projeto é a prova de que o teatro realista não é sinônimo, necessariamente, da realidade objetiva, mimetizada. Suas “torções, transposições e transformações” (5) são o seu sangue na veia.

A imaginação está no poder nos flertes com a “realidade” e o “real” nas produções do Grupo Actoral 80, da Venezuela, e Compañía Els Joglars, da Espanha. Ambas encaram o nervo exposto das políticas públicas para a cultura, via de regra precárias e fatidicamente atingidas ao primeiro sinal de luz vermelha nos cofres do Estado. No caso de Acto cultural, dos venezuelanos, uma instituição de fomento à arte é colocada em xeque, quando seus diligentes montam uma ode a Colombo, expondo indiretamente que a exploração não é condição apenas de colonizadores. Já em El nacional, dos espanhóis, o veterano lanterninha de um decadente teatro de ópera articula reerguê-lo com Rigoletto, de Verdi. Para tanto, seu corpo “instável” é formado por indigentes, uma crítica velada à elitização dos subsídios na Europa, onde a crise financeira dos últimos meses só a faz escancarar ainda mais.

Quanto à representatividade brasileira neste MIRADA, ela segue direção oposta à do aporte histórico predominante nos coletivos internacionais. Das 17 criações, apenas duas localizam diretamente o tempo e o espaço da narrativa e se deixam impregnar pela respectiva época. Em Hysteria, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, aborda a presença da mulher na sociedade do século XIX cotejando boletins de ocorrência na cidade do Rio de Janeiro, laudos médicos de um hospício, jornais, anotações íntimas, retratos posados e tirados por mulheres, diários publicados e cartas esquecidas. No caso de Histórias de família, com o Grupo Amok Teatro, do Rio, a peça da sérvia Biljana Srbljanovic captura o ambiente da guerra que assola a região dos Balcãs nos anos de 1990 sob a ditadura de Slobodan Milosevic. A montagem encerra a trilogia do núcleo em torno de conflitos étnicos, religiosos e civis, em que as perspectivas humanistas são sempre soterradas.

Isso não quer dizer que os demais espetáculos ou intervenções nacionais não examinam temas políticos nos planos do indivíduo e da comunidade, como a diferença de classe, a fome e os embates geracionais. Mas esse panorama pode ser sintomático do quão as artes cênicas brasileiras resistem em problematizar a realidade histórica do país com o mesmo ímpeto criativo e desbravador que investem na pesquisa estética. Há exceções (6), mas parte dessa tendência tem a ver com o delay do reconhecimento e do amadurecimento da sociedade quanto às dores da ditadura militar (1964-1985). A Comissão da Verdade brasileira foi instalada em maio de 2012, ou seja, 27 anos após o fim do regime de exceção. Daí decorre um passado ainda mais desbotado, porque subtraído, inclusive, da narrativa sobre o que aconteceu em todos os quadrantes, como se fosse possível ignorar as sequelas que aí estão.

Um encontro de artes cênicas com a magnitude deste Festival permite ler as entrelinhas do presente, suas latências. Instiga notar como criadores de diferentes pontos no mapa-múndi sincronizam na urgência do olhar atento aos percursos históricos de sua gente, localizando, em cada partícula do drama, a devida pulsão universal. Contra o apagamento, aflora o desejo de pertencimento. E nesse arco das singularidades, nunca é demais lembrar que o movimento em direção à cultura do outro – e cada obra encerra um universo em si – constitui ato político por excelência, quando todos os envolvidos assim toleram.

(artigo originalmente escrito para o catálogo do 2º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, realizado de 5 a 15 de setembro de 2012)

Por Valmir Santos

 

[1] ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo – Una teoría de la narrativa latinoamericana. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
[2] GUIMARÃES, Lúcia. Um olhar sobre as raízes da narrativa latino-americana. In: O Estado de S.Paulo, Caderno Sabático, 28.nov.2011, p. S4).
[3] SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 182.
[4] Exposição Documental imaginário – fotografia contemporânea brasileira, de 24.jul. a 16.set.2012, Oi Futuro, Rio de Janeiro, sob curadoria de Eder Chiodetto.
[5] SARRAZAC (org.), 2012, p. 157.
[6] Citamos núcleos que ancoraram o tema da ditadura militar em criações recentes: a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz com O amargo santo da purificação (2009), em Porto Alegre, no Sul do país; a Companhia do Latão com Ópera dos vivos (2010) e o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos com Orfeu mestiço – uma hip-hópera brasileira (2011), ambos em São Paulo, no Sudeste; e o Grupo Alfenim com Milagre brasileiro (2010), em João Pessoa, no Nordeste.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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