Reportagem
20.9.2012 | por Valmir Santos
O dramaturgo sueco Johan August Strindberg (1849-1912) fez da pulsão artística um modo de purgar a existência. No romance autobiográfico “Inferno”, por exemplo, ele liga o fio terra a um material pessoal – os surtos de esquizofrenia que o acompanharam em boa parte dos 63 anos de vida – para dilatar experimentos de linguagem que superpõem registros de diário, ensaio e ficção.
Imbricação exemplar de vida e arte, a prosa de “Inferno”, que penetra o mundo psíquico do autor e retrata a vontade individual submetida a forças inconscientes, é uma das criações que permeiam um evento de fôlego dedicado à obra do escritor, cujo centenário de morte se deu em 14 de maio.
Durante 40 dias, a partir de amanhã, quatro unidades paulistanas do Sesc abrigam atividades da “Mostra Strindberg”. Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro somam peças, leituras, debates, vídeos, uma exposição com escrivaninhas que evocam a vida do autor, uma demonstração de montagem teatral em criação e uma vivência com participação da encenadora sueca Bim de Verdier.
O programa inclui curtas temporadas de espetáculos do Grupo Tapa (“Credores” e “A Noite das Tríbades”), do diretor Nelson Baskerville (“Brincando com Fogo” e “Credores” – este um “work in progress”), de Christiane Jatahy (“Julia”) e de André Guerreiro Lopes (“O Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência”).
Filho de uma criada com um comerciante, dos quais herdou educação puritana – a mãe morreu quando ele tinha 13 anos -, Strindberg amargou três divórcios e conheceu a solidão e o abatimento espiritual entre as variantes autobiográficas devidamente sublinhadas nas invenções formais e temáticas de sua obra.
Precursor da literatura moderna na passagem do século XIX para o XX, rompendo com os moldes românticos burgueses da época (a começar pela quebra de tempo e espaço na narrativa), sua escrita visionária aporta na chamada era pós-dramática deste século com impacto e encanto permanentes.
“Vejo muita gente das novas gerações falando do pós-drama sem saber o que é drama”, afirma o diretor Eduardo Tolentino, do Tapa, disseminador do teatro de Strindberg no país. Para ele, a desestruturação das convenções do texto dramático aflora com muita propriedade. Strindberg subverte a linearidade, a relação de causa e efeito. “Um personagem de Strindberg pode sair de cena e voltar em outro tempo sem que se dê uma mudança radical de espaço, o que o [americano] Harold Pinter também fará anos depois.”
É um teatro inclinado aos experimentos com o naturalismo, o expressionismo e o surrealismo, sem que essas apropriações surjam inteiramente puras, observa o diretor. Um dos espetáculos do Tapa na mostra é uma estreia: “A Noite das Tríbades”, a partir de 26 de setembro no Sesc Bom Retiro, sob direção da atriz Malu Bazan. Não é uma peça de Strindberg, mas escrita em 1975 por um compatriota, Per Olov Enquist.
A ação se passa em 1889, na Dinamarca, reunindo como personagens o próprio Strindberg, sua primeira mulher, Siri von Essen, uma amiga dela, suposta amante de Siri, e um ator. O casal está prestes a se divorciar. Marginalizado em seu país, o dramaturgo abre um teatro experimental em Copenhague, onde tenta ensaiar “A Mais Forte”, um dos seus clássicos, em que duas mulheres lutam pelo amor de um homem ausente. Enquist projeta um Strindberg presunçoso, amedrontado, amoroso, contraditório e sensível. Um alquimista perplexo diante dos arquétipos do feminino e do masculino.
Isso reflete a pecha de misógino lançada sobre Strindberg, o que a cocuradora da mostra, a atriz e pesquisadora Nicole Cordery, relativiza. Ela observa que não é possível estigmatizar o autor pela aversão às mulheres, vide seu sofrimento amoroso nos três casamentos e a percepção do outro em seus textos, na dimensão humana da dor e da delícia dos relacionamentos. O retraimento se dava pela atormentação mental, a mesma que provavelmente o levou a ousar artisticamente para além dos limites.
Mostra Strindberg
De 18/9 a 27/10, nas unidades do Belenzinho, Bom Retiro, Ipiranga e Santo Amaro, em São Paulo. Ingressos para as peças de R$ 4 a R$ 24. As demais atividades são gratuitas. www.sescsp.org.br.
(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 17 de setembro de 2012, p. D4)
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.