Valor Econômico
20.9.2012 | por Valmir Santos
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Nos últimos dez anos, a combinação de editais públicos para grupos de pesquisa com o impulso dos investimentos privados por meio de leis de incentivo tornou o panorama do teatro mais complexo nas duas capitais. Instituído em 2002, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo destinou neste ano R$ 14,6 milhões para 30 grupos voltados ao teatro de pesquisa. É um valor próximo ao que a Prefeitura do Rio reservou para o Fundo de Apoio ao Teatro (Fate): R$ 14 milhões, distribuídos entre 64 produções teatrais ou circenses de todos os tipos. Para ter uma ideia do crescimento: em 2006, o Fate contou com R$ 850 mil para 11 projetos.
Em relação à captação de recursos, o cenário paulista apresenta números mais favoráveis. De acordo com o MinC, os produtores de São Paulo inscritos na Lei Rouanet foram autorizados a captar R$ 495,8 milhões em 2011, e obtiveram R$ 94,2 milhões com as empresas. No Rio, essa relação foi de R$ 377 milhões e R$ 58,9 milhões.
Mas um processo importante chama a atenção no contexto carioca. Durante muitos anos, a cidade perdeu vários teatros, como o Galeria, no Flamengo; o Delfin, no Humaitá; o teatro do Copacabana Palace, o Teatro de Arena, o da Praia e o Princesa Isabel – estes últimos em Copacabana.
“O público, por sua vez, foi ficando mais acomodado, dando preferência para espetáculos de humor”, afirma o produtor Fernando Libonati, desde 1990 à frente das empresas cariocas Pequena Central e Trupe Produções, em parceria com o ator Marco Nanini. Algumas produções que Libonati ergueu em São Paulo, como “O Médico e o Monstro” (1994), com Nanini e Ney Latorraca, e “Kean” (1995), com Nanini e Debora Bloch, não foram para o Rio simplesmente porque faltavam espaços adequados à época.
A boa notícia é que vários teatros têm surgido por meio da iniciativa privada, como o Teatro Poeira (2005), o Solar de Botafogo (2007) e o Galpão Gamboa (2010), que Libonati administra. Além disso, foram reabertos o Imperator, no Méier, o Teatro Ipanema e o Teatro NET (antigo Tereza Rachel), ambos em Copacabana, o Serrador, o Dulcina e o do Centro Cultural da Justiça, estes três na região central.
“Os centros culturais, como o dos Correios, o do Banco do Brasil e o Oi Futuro se impuseram pela qualidade da programação e política de preços”, afirma Libonati. “Com esse novo panorama, acho que o Rio de Janeiro tende a formar uma plateia mais diversificada, como acontece com São Paulo.”
Enquanto isso, as produções transitam entre as duas praças. Enquanto os palcos de São Paulo atualmente abrigam os espetáculos cariocas “Doroteia” (com Alinne Moraes e Gilberto Gawronski), “Bibi – Histórias e Canções” (com Bibi Ferreira) e “O Livro dos Itens do Paciente Estevão” (Sutil Companhia de Teatro), o Rio recebe a peça paulista “Seis Aulas de Dança em Seis Semanas” (com Suely Franco e Tuca Andrada).
Duas peças, especialmente, exemplificam bem essa simbiose entre a vida cênica do Rio e a de São Paulo. Uma é o drama “O Idiota – Uma Novela Teatral”, adaptação do romance de Dostoiévski pela mundana companhia de teatro, de berço paulistano. A outra, a comédia “Maria do Caritó”, protagonizada por Lilia Cabral, de berço carioca.
Ambas estrearam em 2010, receberam o Prêmio Shell de Teatro, considerado o mais importante do país (“O Idiota” pelos figurinos de Joana Porto; “Maria do Caritó” pela direção de João Fonseca) e foram levadas para as cidades vizinhas, além de circular por outras capitais.
A versão integral de “O Idiota” exige certa flexibilidade do público: dura cerca de sete horas, com dois intervalos, e conduz o espectador por um espaço não convencional (geralmente um galpão ou casarão com quintal) enquanto exibe a saga do príncipe Míchkin entre a epilepsia e as paixões. As sessões no Sesc Pompeia (São Paulo) tiveram ingressos esgotados. E as que ocorreram na Fábrica Bhering (Rio), também.
No público carioca, Aury Porto – que é cofundador da companhia, produtor e intérprete de Míchkin – encontrou “o frisson e a avidez de iniciante na fruição de uma obra teatral”.
É algo que a atriz Lilia Cabral também observa com “Maria do Caritó”. No Rio, o público tem “um espírito mais descontraído, justamente pela geografia, a praia, o sol, enquanto o paulistano é mais solene, não está acostumado a ver artista na rua o tempo todo”, compara Lilia, que interpreta na peça uma cinquentona virgem prometida pelo pai a um santo e empenhada em contrariar tal destino apelando ao circo e a Santo Antônio.
Em relação aos artistas, eles existem em quantidade e qualidade tanto em uma cidade quanto na outra, afirma Aury Porto, que é discípulo de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina. Mas ele aponta uma dissonância: “O Rio produz a maioria dos programas de ficção da televisão brasileira, paga cachês superiores aos do teatro e pode dar enorme popularidade aos atores por ter presença e força indiscutíveis no dia a dia dos brasileiros. Isso leva os atores residentes na cidade a se dedicar mais a esse veículo do que à prática do teatro, arte na qual as exigências são maiores”.
Para Lilia, que entre a temporada carioca de “Maria do Caritó” e a que cumpre agora no Teatro Faap, em São Paulo, estrelou a novela “Fina Estampa”, no papel da popular Pereirão, o teatro é fundamental para a evolução do ator. “O teatro é sempre uma pós-graduação, sem ele a gente emburra”, diz Lilia, que não faz uma separação entre o teatro de São Paulo e o do Rio. “Acreditamos no teatro brasileiro com a verdade cênica que nos distingue das produções da Broadway, por exemplo.” “Maria do Caritó” aborda a cultura popular nordestina com sofisticação e foi escrito pelo pernambucano Newton Moreno, radicado em São Paulo e membro do grupo Os Fofos Encenam.
Por falar em Broadway, os musicais também merecem destaque nas duas cidades: é um setor que tem obtido grande repercussão de público, com qualidade ascendente e um profícuo sistema produtivo e pedagógico (um artista de musical precisa dominar o canto, a dança e o teatro).
Em São Paulo, esse fenômeno despontou em 2001 com “Les Misérables”, adaptação do romance de Victor Hugo que inaugurou o Teatro Abril, iniciativa da empresa mexicana CIE, atual Time for Fun. A agenda paulistana é pródiga em versões de clássicos da americana Broadway e do East End londrino. “Fantasma da Ópera”, “Miss Saigon”, “A Bela e a Fera” e o recente “Cabaret”, estrelado por Claudia Raia, são exemplos de espetáculos que têm atraído para São Paulo turistas de todo o país.
Já no Rio, de forte tradição no teatro de revista, destaca-se a parceria de Charles Möeller e Claudio Botelho, responsáveis por musicais como “Um Violinista no Telhado”, “7 – O Musical” e “Milton Nascimento – Nada Será Como Antes”, entre outros.
Sinal de que cada cidade tem, sim, suas características. Mas isso não significa antagonismo.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.