Valor Econômico
8.10.2012 | por Valmir Santos
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Numa carta datilografada de 22 de novembro de 1979, Nelson Rodrigues consentia a Antunes Filho “um mergulho no infinito” de sua produção teatral. “Espero que saia uma obra-prima irretocável”, escreveu o dramaturgo, que morreu no final do ano seguinte, cinco meses antes de Antunes estrear Nelson Rodrigues, o eterno retorno (1981), com o Grupo de Teatro Macunaíma.
Desde então, a justaposição do texto singular de Nelson Rodrigues com a cena metafísica de Antunes responde por alguns dos melhores momentos do teatro brasileiro. A dobradinha nos palcos começou em 1965, com A falecida. Depois veio Bonitinha, mas ordinária, em 1974. Mas foi a partir da década de 1980 que ela alcançou resultados formalmente mais ousados.
Por isso a baita expectativa quanto à terceira montagem de Toda nudez será castigada, que Antunes mostra a partir de sexta, em São Paulo, a reboque do centenário de nascimento do escritor. “Nelson é o autor brasileiro que mais marcou minha carreira, fui ligado a ele desde que fazia teatro amador. Mexeu com a minha cabeça de encenador”, diz Antunes, de 82 anos.
O projeto é com o mesmo Macunaíma formado por atores majoritariamente vindos do curso do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, que Antunes coordena há 30 anos. Mas traz diferenças.
Nelson Rodrigues, o eterno retorno condensava Álbum de família e O beijo no asfalto, Os sete gatinhos, além de Toda nudez será castigada. A criação experimental mudou de vez o modo de encenar as peças do autor. Antunes descamou a superfície das comédia de costumes – rótulo facilmente colado às histórias de Nelson Rodrigues desde os anos de 1940, mesmo quando o próprio percebia suas 17 peças como psicológicas, trágicas ou míticas, conforme escrutinou o crítico Sábato Magaldi.
Antunes revolveu arquétipos daqueles personagens inspirados no cotidiano das ruas e lares do subúrbio carioca – seres cujas taras e obsessões migram do inconsciente coletivo. O processo artístico trazia como referência obras do filósofo romeno Mircea Eliade (1907-1986), pesquisador da história das religiões, e do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo e também dissidente de Freud, fundador da psicologia analítica na qual o sonho é depositário simbólico de complexos e de sentimentos e desejos reprimidos.
“Foi uma revolução essa colocação de Nelson Rodrigues como poeta, enquanto outros ainda o queriam apenas como o jornalista do dia a dia, o anedotário, o frasista”, diz Antunes.
Sua segunda incursão por Toda nudez será castigada ocorreu em 1984, quando o espetáculo Nelson 2 Rodrigues juntou essa peça com Álbum de família, seguindo as mesmas premissas da montagem anterior.
Agora, na terceira visita a Toda nudez será castigada, Antunes focaliza o que chama de inconsciente estrutural na dramaturgia de Nelson. Mais pragmático que nas montagens anteriores, ele diz buscar a essência da palavra, da mediação entre sujeito e discurso. Para mexer com essa matéria-prima da linguagem – o “corpo verbal” – Antunes se aproxima das teorias do francês Jacques Lacan (1901-1981), outro discípulo de Freud, para quem o ato da fala descortina aspectos da personalidade.
“Eu vou pra cima do Nelson, do ritmo como ele escreveu. Gosto da sintaxe. Nesse espetáculo, quero jogar ainda mais luz sobre a dramaturgia dele. Quero que fique claro. Enxugo o texto com muito cuidado. Não corto nenhuma coisa importante, às vezes uma certa prolixidade de época.”
Definida pelo autor como “obsessão em três atos”, a peça de 1965 mostra como o fato de um irmão não socorrer o outro na falência financeira incita ódio e vingança. Viúvo, pai de um rapaz de 18 anos, Herculano (papel vivido por Leonardo Ventura) é empurrado pelo ardiloso Patrício (Marcos de Andrade) para os braços da prostituta Geni (Ondina Clais Castilho), com quem se casa, para desespero das tias solteironas com as quais mora. A madrasta, por sua vez, se envolve com o enteado Serginho (Lucas Rodrigues), que se descobrirá gay.
Eis algumas das passagens da vertiginosa trama. As cenas transcorrem quase todas em flashback. Logo no início, escutamos a voz de Geni gravada em fita cassete. “Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei.” E assim, em reviravoltas, se sucede a narrativa.
Os personagens revelam aos poucos sua verdadeira face. “É o ruído do indizível, do selvagem, do bárbaro na prosódia do Nelson, refletindo a prisão social em que estão metidos”, afirma o diretor, expondo como o foco na linguagem pode conferir novos sentidos ao texto.
Ele observa nos impulsos de Herculano, Geni, Patrício e Serginho marcas de sadomasoquismo e penitência sob a lente angular rodriguiana – algo que Antunes não percebia com clareza antes. É o inferno em detrimento do éden, sem espaço para a pureza que corresponderia à “nudez” do título.
Antunes quer manifestar em cena o que acredita ser uma visão não mecanicista do mundo, uma flutuação em que o tempo não está separado do espaço. O criador já havia demonstrado fixação pela síntese na relação com o público em A falecida vapt-vupt (2009), peça em que ele adotou um efeito de videoclipe – esse era, também, seu terceiro acesso à peça, em que a protagonista, Zulmira, sonha e conspira contar com um caixão de ouro em seu enterro.
Antunes prefere o palco nu à cenografia, com exceção de uma mesa e de poucas cadeiras. E a luz pouco varia do branco. As versões anteriores de Toda nudez será castigada eram menos austeras em termos visuais.
O diretor deseja priorizar o trabalho de ator, a autonomeada batalha quixotesca por uma voz que gera ressonância e não projeção na amplitude do humano.
Em relação ao fluxo que pretende imprimir no espetáculo, ele se deixa influenciar por romancistas e cita o irlandês James Joyce (1882-1941), de Ulysses.
Quando o personagem Leopold Bloom deixa sua casa na manhã de 16 de junho de 1904, depois de servir café na cama à mulher que o trai, e vai deambular por Dublin, “a ficção começa a mexer com a estrutura de tudo, do próprio teatro”, afirma o diretor, sobre Ulysses. O livro é uma adaptação da Odisseia, épico do poeta grego Homero, compactada na jornada de 18 horas do personagem de Joyce.
“A física quântica e a lei da relatividade surgem no início do século XX, em paralelo ao cinema, à visão de Stanislavski [teatrólogo russo que viveu de 1863 a 1938] para uma interpretação apoiada na memória. O Nelson é fruto de tudo isso. Mesmo que ele não tenha lido ‘Ulysses’, esta percepção mais aberta está no ar.”.
Toda nudez será castigada
De 5/10 a 16/12, no Teatro Sesc Anchieta – Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo). Ingressos: de R$ 8 a R$ 32. Informações: (11) 3234-3000 , www.sescsp.org.br
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.