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Reportagem

Kehl, Solanas e Oficina pensam cultura e política

9.10.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Ferdinando Martins

Depois de dois encontros incendiários, com a presença de representantes de diversas manifestações culturais da cidade de São Paulo, o movimento Cultura Atravessa busca a definição de rumos em meio à pluralidade e a consolidação de propostas efetivas de mudança no cenário atual pós-manifestações. Essas questões foram a tônica do terceiro e do quarto encontros, realizados respectivamente nos dias 7 e 16 de setembro no Teatro Oficina, em São Paulo.

Apesar de sediado no Teatro Oficina, o terceiro encontro não contou com a presença do diretor José Celso Martinez Corrêa e seus atores, que estavam viajando. Foram convidados o cineasta e deputado argentino Pino Solanas e a psicanalista brasileira Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade. O encontro teve como tema “As ditaduras e mentiras do Cone Sul” e foi iniciado com a exibição do filme A dignidade dos ninguém, dirigido por Solanas em 2005. Na plateia estavam cerca de cem pessoas, ante as 500 do primeiro encontro, mas mesmo assim quórum significativo por abarcar representantes do movimento estudantil e de coletivos teatrais, além de artistas, produtores culturais, educadores e jornalistas.

A dignidade dos ninguém trata de histórias e testemunhos de iniciativas que tentam contornar situações de pobreza e de fracasso do Estado de bem-estar argentino. Segundo o diretor, o filme é uma continuação de sua obra anterior, Memórias do saque, de 2003. Enquanto esta traça um panorama de como a Argentina chegou ao panelaço de dezembro de 2001, ocasião em que manifestações populares no país “hermano” derrubaram cinco presidentes em 12 dias, A dignidade dos ninguém revela formas de resistência popular em face de situações de exclusão, quando o Estado falha em atender àqueles que deveria proteger.

Os casos apresentados envolvem má administração, preconceito, corrupção ou a simples sorte de pessoas deixadas ao deus-dará pelas políticas públicas. Alguns exemplos revelam a solidariedade do povo, como é o caso de moradores de um bairro da periferia de Buenos Aires que se reúnem para trocar medicamentos em falta nos hospitais e postos de saúde. Outros exemplos são de lutas mais difíceis, contra a exploração capitalista e a corrupção no sistema judiciário.

Para Solanas, a situação da Argentina não difere da de outros países da América Latina, que viram nos anos 1980 o fim das ditaduras militares, mas que até hoje sentem os efeitos do desmanche econômico, político e social ocorrido nesse período. O diretor chamou a atenção para o fato de que os primeiros presidentes na época pós-ditaduras defenderam políticas neoliberais e envolveram-se com escândalos e corrupção. “Carlos Memen foi o melhor aluno do Fundo Monetário Internacional, vendeu a Argentina, privatizou, aumentou a dívida pública. Fernando Collor de Mello foi outro grande ‘democrata’. Na Venezuela, Carlos Andrés Perez terminou seu mandato ordenando a matança de oito mil moradores de Caracas”, afirmou Solanas, fazendo pausas após pronunciar o nome de cada um dos ex-presidentes.

Filme de Solanas faz contraponto ao neoliberalismo

Maria Rita Kehl comentou que o filme poderia se chamar “antidepressivo para as multidões”. Nesse sentido, Kehl e Solanas fazem eco às demandas das manifestações de junho, indicando que existe a possibilidade de resistência – razão de ser, inclusive, do Cultura Atravessa. Para Solanas, o filme é feito de “pequenas histórias de que se pode resolver alguns problemas”. Kehl completa: “Nossa sensação é de estarmos muito longe do poder”. Não por acaso, salientou, a depressão é hoje o sintoma dominante, “sintoma de alguma coisa social que a gente não sabe o que é. A quantidade de pílulas no mundo já era para ter erradicado a depressão, mas ela progride porque é um sintoma social”.

Assim como Solanas, Kehl acredita que vivemos os efeitos das ditaduras. “As ditaduras prepararam o neoliberalismo. Depois que as formas de organização foram derrotadas, entra o neoliberalismo. Aqui no Brasil, a Lei de Anistia impôs o perdão para os dois lados, como se fossem forças iguais. Tudo se resolve com jeitinho e tapinha nas costas. O homem cordial [expressão criada pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda] resolve tudo com simpatia. O fim da ditadura no Brasil foi cordial”. Essa cordialidade é hipócrita, lembra Solanas. “A hipocrisia é o estilo de boa parte das democracias progressistas latino-americanas. São cordiais e sedutoras, mas esse é o estilo da traição.”

Para Kehl, não é espantosa, portanto, a truculência da Polícia Militar nas manifestações em todo o país. “As polícias brasileiras são militares. O Brasil é o único país da América Latina que não puniu os ditadores. A PM continua com licença para matar”, diz.

A associação das manifestações com a mídia alternativa, em especial a Mídia Ninja, é um ponto importante do debate do Cultura Atravessa. Para Solanas “toda mídia tende a acentuar a impossibilidade de mudar o mundo, cultivar a derrota e a resignação. Se não se pode mudar, melhor é subir no trem do neoliberalismo”. Algumas ações do governo de Cristina Kirchner, como a defesa do casamento igualitário e a disputa com o Grupo Clarín, ainda que tenham algo de positivo, serviram para tirar o foco das “reais situações de exploração, que produzem mais desigualdades”. A morte do ex-presidente argentino Nestor Kirchner foi “devidamente teatralizada”. Para Kehl: “A Rede Globo tem um projeto de Brasil construído na Escola Superior de Guerra. Há um efeito-Globo nas acomodações da classe média no Brasil.”

Público no encontro de início de setembro no Oficina

Da plateia, perguntam como fazer cineclubes apesar do preço alto a ser pago pelos direitos de exibição. A resposta vem de vários lugares: “baixe da internet” ou “apresente mesmo sem ter pagado os direitos”. O próprio Solanas afirmou baixar filmes da rede. Um aluno da USP relacionou a truculência da polícia com a destruição do Canil da Escola de Comunicações e Artes, espaço de vivência estudantil que foi demolido em dezembro do ano passado devido a obras na reitoria da universidade. As conexões são muitas e são complexas, o que pode ser o calcanhar de Aquiles do Cultura Atravessa: como articular e conduzir as demandas. Ou, antes disso, quais são demandas?

No quarto encontro, essas indefinições se tornaram evidentes. A questão central foi o conflito entre o Teatro Oficina e o Grupo Sílvio Santos. A presença de Zé Celso e seus atores modificou o tom do debate, que começou com muita música e pouca gente, cerca de 50 pessoas. Foram exibidos trechos de filmes que registraram a retomada do teatro no início dos anos 1980, as diferentes fases de sua reforma com projeto de Lina Bo Bardi na década de 1990, o tombamento do prédio e a peleja com os vizinhos contra a instalação de um shopping center no entorno do prédio. “São Paulo é o sertão, é uma selvageria, dizia a Lina Bo Bardi. A selva é na rua Jaceguai [endereço do Teatro Oficina]”, diz Zé Celso, universalizando seu teatro para toda a cidade.

Nas telas do Teatro Oficina desfilam autoridades que fizeram parte ou comentam essa peleja: Fernando Gabeira, Juca Ferreira, Edson Elito, Ricardo Ohtake, Paulo Mendes da Rocha, Júlio Neves, artistas, intelectuais, políticos. Um dos pontos altos da projeção é o registro de uma conversa telefônica entre Zé Celso e Sílvio Santos, “conversa  de homem forte para homem forte”, diz o diretor, que no diálogo fala da generosidade do apresentador de TV, separando o homem Sílvio Santos do grupo empresarial que ele fundou.

Alguém do público diz que o Oficina é um teatro de resistência. Zé Celso rebate dizendo que é de luta e de re-existência. Saem frases potentes, mas isoladas. Letícia Coura, atriz: “A ocupação é estética também e já existe há muito tempo”. Camila Mota, atriz: “Não é uma coisa só do Oficina”, fazendo coro a Zé Celso. Para ele, a luta com o Grupo Sílvio Santos não é pessoal, mas sim contra o capital e sua autonomia.

Ainda que legítimas, as reivindicações desse quarto encontro encaixam-se de maneira postiça no Cultura Atravessa e revelam as disparidades de interesses. Como unir as pautas específicas com as mais amplas? Como abarcar instituições com histórias e formas de organização tão díspares?

Depois do quarto encontro, nenhum outro foi marcado. Em sua página no Facebook o movimento registra manifestações sobre a ocupação da Secretaria de Cultura de São José do Rio Preto e, mais recentemente, sobre a crise na Escola Livre de Teatro de Santo André. Cabe esperar para ver se a travessia já terminou.

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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