Crítica
5.4.2014 | por Fábio Prikladnicki
Foto de capa: Keith Pattison
Se você tivesse que assistir a apenas um espetáculo internacional do Festival de Curitiba, teria que ser esse. Foi com essa divulgação que The rape of Lucrece [A violação de Lucrécia] chegou à capital paranaense para sessões na sexta e neste sábado, no Teatro da Reitoria da UFPR. O trabalho da cantora e atriz Camille O’Sullivan e do pianista Feargal Murray é produzido pela prestigiada Royal Shakespeare Company. A espera era justificada pelas críticas positivas que o trabalho dirigido por Elizabeth Freestone obteve no Festival de Edimburgo, em 2012.
Trata-se de uma releitura cênica do poema narrativo de mesmo nome que Shakespeare escreveu em 1594. Inspirado em Ovídio, o autor conta o episódio da violação de Lucrécia por Tarquínio, filho do rei de Roma e conhecido do general Colatino, marido de Lucrécia. Por um capricho da sorte, algumas peças aparecem em um momento apropriado. Este é o caso. O texto se relaciona diretamente com o debate sobre os números da violência sexual contra as mulheres no Brasil. Prova de que a subjugação por meio de seu corpo é uma constante na antiga herança patriarcal.
Se Shakespeare não era exatamente um feminista, o trabalho da companhia inglesa confere ao texto uma sensibilidade que toca até mesmo os espíritos mais engajados. É um encontro com um autor raro no teatro – não o dramaturgo, mas o poeta (Robert Wilson já havia encenado os sonetos de Shakespeare em uma parceria com o músico Rufus Wainwright em 2009, em Berlim, para citar outro caso recente). Um esforço de pesquisa e criação em meio a tantas remontagens de seus dramas bem conhecidos.
Nome pouco familiar do público brasileiro, a irlandesa nascida na Inglaterra Camille O’Sullivan é mais conhecida na Europa como uma cantora que busca referência na música de cabaré com um toque indie. Espécie de Ute Lemper mais desinibida e hipersexualizada, ela regravou Radiohead (True love waits) e Arcade Fire (Wake Up). Em The Rape of Lucrece, oferece um temperamento oposto ao de suas performances musicais inebriadas: uma delicada jornada entre a narração teatral e a canção, transitando entre uma e outra com naturalidade. Gênero poucas vezes visto nos palcos brasileiros.
Pontuada pelo piano irrepreensível de Murray, parceiro de longa data, Camille toma para si o papel de narradora, por vezes assumindo a voz de Lucrécia e por vezes de Tarquínio. Ilustra a história com pequenos gestos que sugerem ações. Conforme a trama se aproxima do momento crítico, a narração dá lugar à representação (a cena do estupro é repleta de gritos e contorções). É uma escolha ousada, que rompe a convenção estabelecida desde o início, mas tem o mérito de acentuar o drama – e por consequência, o caráter político do espetáculo, por assim dizer.
Camille canta em um registro que fica entre o lírico e o popular, algo próximo da linguagem dos musicais, mas com intimismo. As canções são contemporâneas e acessíveis, o que parece ter sido um acerto. É preciso ajudar Shakespeare a continuar sendo um autor do nosso tempo.
.:. O jornalista viajou a convite do festival.
.:. Publicado originalmente na versão on-line do jornal Zero Hora de hoje, 5/4/2014.
Serviço:
The rape of Lucrece [A violação de Lucrécia]
Onde: Teatro da Reitoria (Rua XV de Novembro, 1.299, Centro, Curitiba, tel. 41 3360-5066).
Quando: última apresentação hoje, às 21h.
Quanto: R$ 60.
.:. Mais informações no site do Festival de Teatro de Curitiba, aqui.
Onde: Sesc Pinheiros – teatro Paulo Autran (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, tel. 11 3095-9400).
Quando: De 11 a 13/4. Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h.
Quanto: R$ 10 a R$ 50.
Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.