Menu

Reportagem

Muito além de uma vitrine de espetáculos

22.4.2014  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Xavier Cantat

O Festival Cena Brasil Internacional, que chega à terceira edição, reforça a sua principal característica: a de estimular o intercâmbio entre os artistas, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Mais do que visar à reunião de espetáculos, o evento foi concebido com o intuito de promover parcerias. Por isso, os grupos selecionados não “apenas” apresentam seus trabalhos como realizam oficinas. E permanecem no Rio de Janeiro durante todo o Festival, que toma conta do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e entorno, entre amanhã [22/4] e o dia 4 de maio.

Há também o desejo de aproximar as companhias brasileiras de festivais internacionais, como os de Edimburgo e Avignon – onde, aliás, os espetáculos estrangeiros do Cena Brasil costumam ser garimpados. Este ano já foram determinados os grupos que viajarão: Armazém (com O dia em que Sam morreu), Caixa do Elefante (Ensaio sobre o tempo), Mundana (O duelo) e Do Meu Tio (O sapato do meu tio).

Cada companhia precisa dispor de cerca de R$ 200 mil para ir aos dois festivais, custo referente aos gastos com hospedagem, alimentação e transporte de cargas. “Nós ficamos encarregados das passagens juntamente com o Ministério das Relações Exteriores”, afirma o produtor Sérgio Saboya, idealizador e diretor do Cena Brasil Internacional.

Além do intercâmbio artístico, Saboya realça que o contato com as companhias e os festivais estrangeiros é importante para que os artistas brasileiros aprendam estratégias de sobrevivência praticadas no exterior. “Na França, cada província tem um teatro e um programador. Eles vão aos festivais, que funcionam como grandes feiras, para comprar espetáculos. É assim que os grupos se sustentam. No Brasil, o mercado teatral deixou de existir. Fica complicado manter companhia hoje no país. É necessário criar um espetáculo por ano para participar de editais. Não por acaso, surgem montagens descartáveis. E enfrentamos dificuldade para circular dentro do Brasil. As companhias devem buscar uma reeducação, empreender uma mudança de comportamento”, sublinha Saboya, produtor, há quase 14 anos, da cia. Dos à Deux.

Por mais que transcenda o perfil de vitrine de espetáculos, o Cena Brasil Internacional sobressai pela programação. Este ano, o público verá cinco encenações internacionais e quatro brasileiras. Integrando a seleção brasileira estão montagens de sólidas companhias, como Os Fofos Encenam (Assombrações do Recife velho), Lume Teatro (Os bem-intencionados), Clowns de Shakespeare (Sua incelença, Ricardo III) e Galpão (Os gigantes da montanha).

As estrangeiras são Dos à deux – segundo ato, nova versão do primeiro espetáculo do grupo franco-brasileiro Dos à Deux; Caesarean section. Essays on suicide, da Teatr ZAR, companhia polonesa com sede no Instituto Grotowski e premiada com esse trabalho (que será mostrado em São Paulo nos dias 9, 10 e 11 de maio, no Sesc Pompeia) no Festival de Edimburgo de 2012; Kaïros, Sísiphos y Zombis, da Compagnie L’Alakran, da Suíça; Hela, do grupo Iron-Oxide, da Inglaterra; e a intervenção artística Todo lo que está a mi lado, de autoria de Fernando Rúbio, da Argentina, obra que nasceu com a vinda do diretor ao Cena Brasil no ano passado.

Criação do diretor e dramaturgo argentino Fernando Sem créditos

Obra do encenador argentino Fernando Rúbio

A proposta de Fernando Rúbio ocupa um lugar singular dentro da programação. “Tudo começou com uma lembrança de infância ligada ao primeiro momento da minha vida em que fiquei sozinho. Eu estava com quatro ou cinco anos e fui de carro com o meu pai para fora de Buenos Aires. Dormi no banco de trás e acordei com os ruídos de um temporal. Não vi ninguém no carro. Meu pai tinha saído para resolver algo”, revela Rúbio.

A partir dessa evocação, o artista concebeu uma performance, na qual sete atrizes recebem, cada uma, um espectador. Dispostas em camas, as atrizes falam um texto curto escrito por Rúbio, que dura em torno de dez minutos. “Pensei no elemento da cama pela posição em que me encontrava no carro. Temos uma relação cotidiana, ordinária, com a cama, apesar de se tratar de um lugar poderoso. E não sei o porquê, mas senti que esse texto precisava ser dito por mulheres. Gosto do que desconheço. Suspeito que há algo mais que não conseguimos compreender. O mistério nos humaniza”, aposta Rúbio. As atrizes fazem dez vezes a apresentação, totalizando 70 espectadores por dia.

É possível perceber vertentes desenvolvidas por Rúbio. Uma delas é a investida num vínculo individualizado entre ator e espectador, ambos confrontados com uma experiência inédita (e, até certo ponto, imprevisível), e o afastamento deste último de uma apreciação passiva. “O espectador não é só um observador, mas um espaço de investigação”, diz.

Rúbio pesquisa ainda a influência do trabalho nos variados espaços em que é apresentado e vice-versa. Mesmo preservando a estrutura (as atrizes nas camas, a interação com um espectador por vez), a performance foi mostrada em lugares diversos no Chile, no Uruguai, na Espanha, na Argentina, na Holanda e em Cuba, como lago, praia, presídio e convento. Depois do Brasil, Todo lo que está a mi lado desembarcará em Nova York e Atenas.

Dos à Deux – segundo ato despontou de um convite para que o grupo apresentasse seu repertório. Artur Ribeiro e André Curti decidiram, então, retomar Fragmentos do desejo, Ausência, Irmãos de sangue e reestruturar Dos à Deux, espetáculo de 1998, diretamente inspirado em Esperando Godot, célebre peça de Samuel Beckett.

“Fizemos mudanças no cenário, nos figurinos, na música, recriamos coreografias. Dois atores franceses entraram, trazendo uma dinâmica diferente”, informa Ribeiro, mencionando Clément Chaboche e Guillaume Le Pape.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C3, em 21/4/2014.

Serviço:
Festival Cena Brasil Internacional 2014
Onde: CCBB Rio e Praça dos Correios (região central, Rio de janeiro)
Quando: 22/4 a 4/5.
Quanto: R$ 10
Mais informações no site do festival, aqui

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

Relacionados