Reportagem
27.5.2014 | por Beth Néspoli
Foto de capa: Mattieu Bordon
São cerca de 15h aqui em Bruxelas, cinco à frente do horário de Brasília. Na sala central do prédio da Bolsa de Valores o diretor Antônio Araújo e o ator Roberto Audio conversam sobre o espetáculo Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas (Dizer o que você não pensa em línguas que você não fala), criação do Teatro da Vertigem que estreia logo mais, às 20h15 daqui (15h15 aí), tendo os espaços internos e externos desse edifício como palco.
Apesar das poucas horas que precedem a estreia, ambos discutem sobre uma das cenas do Pastor interpretado por Audio, criada no ensaio da véspera. Pouco depois, Audio conta que a cena fora pedida pelo diretor na segunda-feira, antes do ensaio geral. “Como funcionou bem, o Tó reordenou hoje e vai ser incorporada”, afirma. Numa sala anexa, ele repassa ao dramaturgista Antônio Duran o texto da cena recém-criada, mas aprovado por Bernardo Carvalho presente ontem no ensaio geral.
Quem faz teatro no Brasil sabe que até o último momento ainda há acertos a fazer e, pelo visto, não é diferente por aqui.
A encenação de Dizer o que você não pensa em línguas que você não fala é uma criação do Teatro da Vertigem com atores brasileiros e belgas, basicamente, mas também há franceses e africanos no elenco que levam uma babel de idiomas aos espaços da Bolsa de Valores por onde deambulam: português, flamengo, francês, inglês e suaíli ou swahili são algumas das línguas faladas nas diferentes cenas, e não por acaso uma das primeiras se passa no aeroporto onde uma dupla de brasileiros é interrogada pelo agente aduaneiro.
A trama gira em torno de um brasileiro (Didier De Neck) que na década de 1970 passou uma temporada em Bruxelas como exilado político da ditadura militar brasileira. Afásico após a morte de sua mulher, é trazido à Bélgica pela filha economista (Claire Bodson), convidada a dar uma palestra cujo tema é Crise europeia e identidade. Ela imagina que fará bem ao pai rever lugares e pessoas do passado, mote para que se trate de temas como pertencimento e intolerância.
A crise europeia e suas consequências sobre as relações humanas é o eixo temático do espetáculo que tem entre seus principais personagens um agente da imigração interpretado por Nicolas Gonzales. “A confusão entre fronteiras ideológicas também está entre os temas”, diz Duran. O sindicalista (Jean-Pierre Baudson) que abrigou o pai no passado se diz de esquerda, mas faz um discurso no qual defende ações de segregação e controle com o argumento de que é preciso combater a corrupção.
“Ele argumenta que os tempos mudaram”, diz Duran. Nelson Rodrigues dizia que basta um sopro e o homem cai de quatro – numa referência à fragilidade da civilização, mero verniz para os nossos instintos selvagens. “O que está em jogo aqui é a civilização degrada sob a aparência de racionalidade. A crise leva as pessoas a querer eleger quem vai resolver os problemas e abre assim espaço para os fascismos”.
Pergunto se o atentado ocorrido no Museu Judaico interferiu de alguma forma nos ensaios (no domingo passado um homem armado atirou e matou dois turistas israelenses e um funcionário da recepção em pleno centro histórico da capital belga). “Não, mas infelizmente é exatamente sobre isso que trata o espetáculo, sobre a intolerância como uma das consequências da crise financeira. Não há um atirador, mas há a cena em que alguém coloca fogo no corpo de um morador de rua.”
No elenco brasileiro, além de Audio estão as atrizes Luciana Schwinden e Katia Bissoli e o ator Daniel Farias. A atriz francesa Laetitia Augustin-Viguier (inesquecível para quem viu, ela era a guia fantasmática do espetáculo Bom Retiro, 958 metros) veio de Paris especialmente para integrar o elenco, assim como partiu de Berlim, onde vive, o brasileiro Thiago Bortolozzo, criador da cenografia.
Não foi possível assistir ao ensaio geral, não cheguei a tempo. Mas pelas fotos cedidas a iluminação de Guilherme Bonfanti deve ter papel relevante na encenação. Sob o céu cinza de Bruxelas, no momento, a sala em que o texto para o Teatrojornal é escrito está na penumbra, assim como todo o prédio. Luz só no portão principal, aberto para a escadaria que termina numa avenida. Ali, do lado de fora, com apenas uma cena na rua o espetáculo vai começar daqui a pouco. A abertura conta ainda com uma instalação, uma SDF (sem domicílio fixo), como os artistas europeus costumam definir esse tipo de ação.
Ficha técnica:
Texto: Bernardo Carvalho
Direção: Antônio Araújo
Com: Roberto Audio, Jean-Pierre Baudson, Claire Bodson, Didier De Neck, Vanja Godée, Nicolas Gonzales, Vincent Hennebicq e Luciana Schwinden
Coro: Laetitia Augustin-Viguier, Khatia Bissoli, François Ebouele, Laetitia Evens, Daniel Farias, Fabien Magry e Nabil Missoumi
Dramaturgia: Silvia Fernandes e Antonio Duran
Cenografia: Thiago Bortolozzo
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Música original e criação sonora: Thomas Turine
Trompete: Ludovic Bouteligier
Vídeo: Fred Vaillant
Figurinos: Frédéric Denis e Laurence Hermant
Assistente de direção: Eliana Monteiro e Maria Clara Ferrer
Tradução: Pauline Alphen
Coordenação de produção da companhia Teatro da Vertigem: Roberta Val
Realização de figurino: ateliers du Théâtre National Bruxelles
Coprodoução: Festival d’Avignon e Théâtre National Bruxelles, com participação da companhia Teatro da Vertigem e subsídios do Programme Culture de l’Union Européenne integrados ao projeto Villes en Scène/Cities on Stage
.:. Mais informações sobre o projeto Cities on Stage, aqui.
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.