Crítica
Radicado em São Paulo há muitos anos, onde já foi agraciado com um Prêmio Shell pelo conjunto de sua obra teatral, Mário Bortolotto é um dos muitos artistas de diversas áreas que nasceram em Londrina (PR) e se tornaram inter/nacionalmente notáveis. Como Arrigo Barnabé, Paulo de Moraes, Domingos Pellegrini, Patrícia Selonk, Rodrigo Garcia Lopes, Itamar Assumpção (de Arapongas, cidade vizinha, mas nutrido artisticamente em Londrina), dentre outros.
Dramaturgo e diretor, suas muitas peças se distinguem pelas situações conflitantes e memoráveis. Elas são consistentes e coerentes com a trajetória que seu autor vem traçando. Enxutas (por isso, se prestam à linguagem do cinema, que já se serviu de dois dos seus enredos), vão direto ao assunto, e nunca pretendem parecer mais do que são. Desenham situações intensas, condensadas, e personagens fortes, marcantes. E os títulos são especialmente interessantes (A frente fria que a chuva traz, Deve ser do caralho o carnaval em Bonifácio, Música para ninar dinossauros, etc) geram imediato interesse num espectador desavisado.
Em cartaz na Funarte MG entre 31/7 e 3/8, Homens, santos e desertores veio a Belo Horizonte graças ao Prêmio Myriam Muniz/Funarte de circulação, que também contemplou as três sessões de Ato de comunhão, de quinta a sábado passados, no mesmo espaço. Salvo engano, é só o segundo texto de Bortolotto trazido à cidade – pouco, considerando o volume e o quilate do que ele escreve.
Uma edição do FIT/BH escalou a montagem do Cemitério de Automóveis, seu grupo há 20 anos, para Minha vida não vale um Chevrolet – e sua deliberada economia de recursos cênicos foi recebida por muxoxos. Já Fernando Couto montou este mesmo Homens, santos e desertores, em 2012. Pelo trabalho, obteve o Sinparc de melhor ator, numa encenação bastante mais modesta que a visitante, dirigida por Ernesto Piccolo.
Talvez, este não seja o texto mais atraente e bem recebido de Bortolotto. Soa menos verossímil a relação de um solitário casmurro, devotado aos livros e às suas doloridas memórias amorosas, e um jovem sem chão na vida, afetivamente órfão de pai e mãe. Como o adulto desesperançado, Ricardo Blat cumpre mais uma interpretação bastante acima da média. É um ator único, inigualável. E parece tão empenhado em emprestar mais interesse ao enredo que talvez sua performance se aproxime do show. O que só o distancia do esforço de Nelson Yobetta, de aparência similar à do personagem, mas menos à vontade como o jovem em franco tumulto.
Admirável diretor de comédias (A história de nós dois, por exemplo), Ernesto Piccolo aquece a voltagem da cena distribuindo trechos de rocks (re)conhecidos nos intervalos da cronologia da trama. Já a cenografia, defensável na escolha dos objetos, não consegue ampliar as intenções da dramaturgia.
Deduzindo o que importa menos do que realmente atrai e tem a dizer de importante, Ato de comunhão, que também foi apresentada na Funarte no mesmo período, se sai melhor ao abordar o delito verídico de Armin Meiwes. Gilberto Gawronski interpreta o canibal alemão detido e julgado em 2001.
Não pertencem ao texto do argentino Lutaro Vilo os elementos soturnos da primeira metade da encenação, dirigida por Gawronski e Warley Goulart. As projeções de nuvens carregadas, as penumbras, os ruídos podem induzir o espectador a encarar como aberrante o ato de Armin, mas se dissipam na segunda metade.
Esta “virada” apanha de surpresa a plateia e instiga à discussão de a quem a vida de fato pertence. Ao Estado, ao cidadão? É o que a eutanásia, a morte voluntária e assistida reivindica em outra instância, e portanto o espetáculo se alia à pauta de proposições do homem civilizado do nosso tempo. Temas como estes, tratados com destemor e estatura, tornam o teatro ainda mais complexo, mais importante, mais necessário. (postado em 5 de agosto de 2014)
.:. Texto publicado originalmente no Blog da Cena, de Miguel Anunciação.
Ficha técnica de Homens, santos e desertores
Texto: Mário Bortolotto
Direção: Ernesto Piccolo
Com: Ricardo Blat e Nelson Yabeta
Cenário: Ernesto Piccolo
Figurinos: Nina Reis
Iluminação: Bruno Peixoto
Trilha sonora: Rodrigo Penna
Programação visual: Daniel Gnattali
Produção: Nelson Yabeta
Realização: Casa dos Azulejos Produções Artísticas e Culturais
Ficha técnica de Ato de comunhão:
Autor: Lautaro Vilo
Tradução: Amir Harif
Com: Gilberto Gawronski
Direção: Gilberto Gawronski e Warley Goulart
Vídeo: Jorge Neto
Luz: Vilmar Olos
Direção de produção: Wagner Uchoa
Jornalista profissional desde 1977, já integrou órgãos de imprensa de São Paulo, Salvador e Belo Horizonte. Atua como repórter e crítico de espetáculos há 20 anos. É curador assistente do Multifestival de Teatro de Três Rios (RJ).