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Crítica

Subjetivismo de Kovacic, pragmatismo de Duras

18.11.2014  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Luiz Netto

Em O amante, Marguerite Duras escreve: “A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria haver alguém, mas não é verdade, não havia ninguém. A história de uma pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte, a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido. Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui falo dos períodos secretos dessa mesma juventude, das coisas que ocultei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos. Comecei a escrever num ambiente que me obrigava ao pudor.”

Marguerite Duras foi mulher de frases-espinho e desabafos. Mulher que fez da sua poética pragmática a voz de uma alma dolorida. Por este caminho de idolatria caminha o chef de cozinha Claudio Kovacic na sua estreia como diretor e autor de teatro, com o espetáculo Pouco me importa se tu me amas. Eu sou Duras, uma peça tão pessoal e particular que, embora tenha em cena uma das mais competentes atrizes da atual geração pernambucana, se perde na sua condução pela dramaturgia divagante e confusa.

Kovacic leva à cena uma história ficcional baseada na vida de Duras – aliás, na maneira peculiar com que ele compreende a vida de Duras. Um dos nomes ácidos da literatura mundial do século 20, Marguerite experimentou uma paixão visceral e dilacerante nas suas linhas textuais. O espetáculo encenado no pequeno auditório da escola Aliança Francesa, no Recife, é um desabafo da escritora após receber a notícia da morte do seu amado. Duras é transposta por Kovacic ao Recife atual. Entre goles de bebidas, incontáveis cigarros fumados, a mulher se rasga em poesias e divaga sobre a vida, a morte e seus limites (ou a falta deles).

A peça desenha dois tempos dramatúrgicos. Num primeiro momento, Kovacic opta por um ritmo mais calmo e deixa isso bem evidente no texto. O que seria a apresentação da trama, por um excesso de redundância e rebuscamento, parece não sair daquilo, e cansa. Mais a frente, na segunda metade do espetáculo, a trama cria um ritmo mais veloz, que atrai mais a atenção do espectador. A história fica clara, os devaneios também. Ali, percebemos, enfim, o sofrimento de Duras e nos tornamos cúmplices dele. O que nos falta, diante de Pouco me importa se tu me amas. Eu sou Duras é exatamente o pragmatismo, mesmo entre subjetividades, da escritora que soube dizer com todas a letras tudo aquilo que sempre quis dizer.

Em cena, quem vive a persoangem-título da peça é a atriz cearense radicada no Recife Ceronha Pontes. Dona de uma interpretação genuína, Ceronha se apossa do papel com o olhar verborrágico que lhe é de costume e um corpo pontuado pelos gestos e posturas franceses (as pernas cruzadas, a elegância do corpo ereto, as mãos de movimentos delicados). As frases ditas por Ceronha, entretanto, parecem prendê-la em uma zona de conforto, impossibilitando-a de uma encenação mais emocionante.

.:. Texto publicado originalmente no site do Jornal do Commercio (PE), em 12/11/2014.

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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