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Reportagem

Entranhas e frestas públicas de ‘Orgia’

30.12.2014  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Cristina Froment

Quando se propôs a debater a homossexualidade pelo viés do teatro, já na sua estreia o grupo paulistano Teatro Kunyn levou à cena um dos mais elogiados espetáculos contemporâneos produzidos no Brasil sobre este tema. Em Dizer e não pedir segredo (2010), o grupo enveredou por relatos e situações vividos por gays no país desde o império até os dias atuais, utilizando como palco as salas, os quartos e as cozinhas de casas e apartamentos. Em junho de 2015, a companhia estreia na capital paulista um novo trabalho, desta vez sobre o universo homossexual do Recife dos anos 1960, com base na obra do dramaturgo, jornalista, escritor e poeta argentino Tulio Carella, contextualizado nas ruas, nos parques e praças, onde o assunto vive grosso modo à marginalidade.

Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias (nome provisório) envereda “pela esfera pública”, como explica o diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi. O livro que deu base à peça, Orgia, é um diário da estada de Tulio no Recife de 1960 a 1962, quando ele, convidado pelo encenador Hermilo Borba Filho (1917-1976), veio dar aulas de cenografia no então recém-criado Curso de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta época, o autor se apaixonou pela beleza dos homens negros e mestiços recifenses, e no livro relatou suas experiências sexuais e seus fetiches.

“Para a criação de Dizer e não pedir segredo, a gente tinha lido muito João Silvério Trevisan, o Devassos do paraíso, e dentro desse livro tem um estudo sobre Tulio Carella. Quando Orgia foi relançado (2011), eu estava no Recife dirigindo Aquilo que o meu olhar guardou para você (do Grupo Magiluth), e o li refazendo as coisas do livro. Acompanhando ‘in loco’”, conta o diretor [também cofundador e vinculado ao paulistano Grupo XIX de Teatro]. Ele refez o caminho dois anos depois, junto com os atores Luiz Gustavo Jahjah, Paulo Arcuri e Ronaldo Serruya.

“A peça não é o livro. O livro é o disparador do procedimento de pensar a esfera pública, na qual a homossexualidade é vivida nas frestas, nos vãos, nos becos”. O espetáculo se passará em parques e praças, e a plateia vai ser convidada a se embrenhar no percurso e testemunhar as situações vividas pelos atores. “Não é uma peça para sentar e olhar. No processo de criação, proponho uma série de experiências dos atores e depois construo o espetáculo. Neste caso, faremos uma viagem de dez dias para a Argentina (o caminho oposto ao de Tulio), atrás de vestígios, roupa e figurino; e, em seguida, faremos derivas em parques e largos de São Paulo que são ligados a essa questão de homossexualidade, como os Trianon, o Arouche e o Ibirapuera”, conta Lubi.

O espetáculo vai ser criado a partir do edital Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, que bancará a companhia durante um ano, com um total de R$ 330 mil. Para a construção, o grupo ainda fará uma oficina na capital paulista com 15 atores homens com mais de 18 anos. As aulas começam no próximo dia 26 e durarão três meses. “Tenho vontade de olhar o passado histórico para nos trazer ao presente. E a história de Tulio, no Brasil, é possível fazer esse paralelo. Nos interessa também essa perspectiva de ser estrangeiro, de ser fora da norma, não estar dentro. A peça parte também dessa provocação.”

Surruya na primeira peça do grupo KunynCristina Froment

Ator do Kunyn na montagem anterior do grupo

Nem bem Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias começou a ser montada, já protagonizou uma situação polêmica. Após reportagem publicada há uma semana no jornal O Estado de S.Paulo sobre a safra de espetáculos que abordarão a temática gay em 2015, leitores xingaram os grupos com comentários homofóbicos e acusações de anarquismo e comunismo.

“Isso nos assustou, porque não tínhamos vivido isso. Alguns de nós do grupo já sofremos ataques homofóbicos, mas não dessa maneira”, diz Luiz, para quem o preconceito contra gays é uma contradição num país que “consegue construir essa imagem de liberal, mas que é tão conservador”. “Esse escancaramento dos preconceitos está ficando muito forte no Brasil, a começar pelos líderes políticos. Veja um deputado que defende o estupro, por exemplo”, afirma o diretor, ao mesmo tempo em que comemora o fato de que em 12 anos do Fomento, o Kunyn ser o primeiro grupo dedicado exclusivamente ao universo gay a ganhar o prêmio.

O livro

​Orgia, o livro de Tulio Carella, foi lançado em 1968 com tradução para o português de Hermilo Borba Filho. Usando o alter ego Ginarte, o autor relata em um diário boa parte de seus pensamentos e experiências com outros homens. Dentro de um contexto de repressão e preconceito, o personagem transa em praças públicas e banheiros.

“Assim como o Recife é a primeira cidade do Brasil, durante o período colonial, a ter uma vasta iconografia sobre ela, foi também a primeira a ter uma discrição de sua vida sexual afetiva no século 20, graças ao livro de Carella, um dos últimos escritos de um estrangeiro sobre a cidade ”, explica o professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, Anco Márcio Tenório. “Quando alguns brasileiros começaram a escrever sobre a homossexualidade, como João Silvério Trevisan, no anos 1970, eu diria que já estava dentro de um certo clima que não chocava tanto, diferente da época de Tulio Carella”, completa.

Confundido pelas autoridades militares como contrabandista cubano, Tulio Carella passou 15 dias preso e torturado, e depois foi para a Argentina, onde escreveu o livro. Orgia foi reeditado em 2011 pela Opera Prima, após anos esquecido.​

.:. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Caderno C, p. 1, em 30/12/2014.

Capa - Opera PrimaReprodução

Capa do livro reeditado

.:. Leia em PDF a introdução do livro com a trajetória de Carella na Argentina e no Brasil, por Alvaro Machado, jornalista e editor de Orgia, aqui.

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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