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Crítica

Bolhas urbanas para vidas assépticas

17.1.2015  |  por Francis Wilker

Foto de capa: Guto Muniz

Para ler ao som de Because, The Beatles, acesse aqui.

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Certamente, para muitos artistas de teatro, escolher um texto e levá-lo à cena significa percorrer um caminho bastante habitual em que vivenciam etapas como realizar leituras de mesa ou procedimentos de análise ativa, dividir personagens, decorar falas, etc. Porém, para alguns grupos, especialmente aqueles criados sob o signo do processo colaborativo ou da criação coletiva, em que a cena e as improvisações dos atores ajudam a compor o texto, o caminho descrito acima se mostra como uma nova e arriscada aventura. Para o grupo mineiro Teatro Invertido, que comemora uma década de trabalho continuado, experimentar essa rota “do texto à cena” se colocou como a possibilidade de descobrir novos desafios e gerar outras dinâmicas criativas para os seus integrantes.

O espetáculo Noturno, que estreou recentemente em Belo Horizonte abrindo o Festival Verão Arte Contemporânea (VAC), levou à cena o texto homônimo de Sara Pinheiro, jovem e engajada dramaturga da cena local, escrito especialmente para o grupo. A montagem promoveu ainda um encontro de gerações, artistas do Invertido e as veteranas diretoras Yara de Novaes (mineira radicada em SP, vinculada ao Grupo 3 de Teatro) e Mônica Ribeiro (docente do curso de Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG).

Em cena acompanhamos o encontro inusitado de cinco amigos que, num churrasco de domingo, entre uma dose e outra, revelam seus medos, desejos e conflitos, sobretudo os conjugais, à beira de uma piscina e pressionados por um suposto fim do mundo que se aproxima. Indiscutivelmente, os aspectos visuais da encenação saltam aos olhos e seduzem o espectador nos primeiros minutos. Contribui para esse resultado o cuidadoso trabalho do cenógrafo Ed Andrade, bem como o jogo espacial preciso na movimentação dos atores e no uso que fazem dessa estrutura.

É justamente essa paisagem bela e marcadamente artificial que, talvez, nos forneça uma das possibilidades de leitura para Noturno. Ao refletir sobre nossa sociedade, o intelectual francês Guy Debord escreveu a Sociedade do espetáculo (1967), obra que alimenta, até os nossos dias, muitas discussões dentro e fora das universidades. É de suas proposições que emerge o conceito de “espetacularização”, ao discutir sobre o domínio da imagem e da não participação na sociedade. Em ensaio publicado no livro A teatralidade do humano (Edições Sesc SP, 2011), a arquiteta Paola Berenstein Jacques faz uma interessante associação desse conceito à realidade das cidades e do espaço público nos nossos dias: “(…) O que o espetacular faz é tirar as pessoas das ruas, criando esses mundos, essas ilhas fechadas, separadas (…). Considero que essa não ação resulta na alienação do mundo contemporâneo, e que em relação ao urbano leva à espetacularização da cidade, que passa então a ser cenográfica, um puro cenário onde não há de fato ação nenhuma.”

Ironicamente, é nesse cenário simulador da falsa ideia de um “mundo perfeito” que os personagens trazem à tona tantos de nossos dilemas contemporâneos: água contaminada e escassa; violência; Europa em crise; poluição; invasões, etc. Entre as soluções apontadas por um deles está a construção de um condomínio fechado, autossuficiente e seguro, o melhor investimento para seguirem vivos diante de um planeta em rota de colisão. Talvez, a realidade pintada pela peça não esteja tão longe da nossa. Afinal, muitos são os estandes de empreendimentos imobiliários que procuram nos vender essa falácia de um lar asséptico, seguro e belo, completamente desligado do apocalipse social em que vivemos.

'Noturno' é projeto intergeracional do Teatro InvertidoGuto Muniz

‘Noturno’ é projeto intergeracional do Teatro Invertido

Possivelmente uma das reflexões mais funda endereçada pelo espetáculo seja em relação a gerar novas vidas em tempos de barbárie em expansão ou, quem sabe, do próprio valor à vida. A presença ampliada de um bebê que só vemos pela projeção num telão parece reforçar o tema. Trata-se de Martina, filha de um dos casais da trama, uma criança que está com febre e que exige cuidado e atenção. Em contraponto, a personagem Valéria deixa claro aos amigos e ao marido que deseja engravidar “para ter uma vida dentro dela”. O seu desejo é questionado por afirmações como: “Colocar mais gente no mundo é loucura, é egoísmo!”. A provocação é lançada e se intensifica ao longo da peça.

Outro vetor interessante que pode ser notado no trabalho é um movimento em que o discurso racional e cientificista que se faz presente na fala dos personagens, principalmente dos homens, é sobreposto, na cena final, pela fala de uma empregada que devolve ao mundo o discurso do mito, da ancestralidade, aquilo que a oralidade permitiu passar de geração para geração. Uma palavra que carrega vida.

Apesar de construir um mosaico de contradições deste século e propor complexas reflexões, a dramaturgia parece buscar um caminho apaziguador no seu desfecho, correndo o risco de uma leitura sustentada numa ótica moral ou cristã, o que, infelizmente, parece minimizar o impacto da tensão asfixiante que toma a vida de seus personagens. Fora isso, os atores se mostram dedicados na busca de configurar o jogo rápido presente nos diálogos curtos, em dar vida ao humor sutil e irônico que brota das situações propostas e que já mostrou cativar os espectadores desde a primeira apresentação em Belo Horizonte. O passo que, talvez, seja necessário ser dado ao longo da temporada diz respeito à configuração efetiva dos climas emocionais que o texto parece demandar, especialmente na sequência final de cenas.

Para além desses aspectos, Noturnose mostra como uma experiência bastante poética (como na cena em que entoam a saudosa canção Because) para tentar emitir sinais que expressem os caudalosos tempos em que habitamos isso que, segundo um dos personagens, já nem podemos chamar de mundo.

Para quem conhece a trajetória deste coletivo, à primeira vista Noturno pode se mostrar bastante distante de obras anteriores. Porém, se colocado ao lado de criações como Os ancestrais (2013) e Proibido retornar (2009), embora sejam montagens que partam de rotas e escolhas tão distintas, podemos perceber algo em comum: a exploração de relações familiares/privadas que têm como pano de fundo um contexto social mais amplo, complexo e eminentemente político. Uma rotunda temática em que a discussão sobre o espaço urbano e suas contradições se insere de modo recorrente. Dessa vez, a lente do Grupo Teatro Invertido parece ter mudado apenas de classe social, apontou sua mira para a ascendente e burguesa classe média.

Serviço:
Onde: Teatro Oi Futuro Klauss Vianna (Avenida Afonso Pena, 4.001, Mangabeiras, Belo Horizonte, tel. 31 3229-2979.
Quando: Quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 18/1.
Quanto: R$ 16

Ficha técnica:
Direção: Monica Ribeiro e Yara de Novaes
Texto: Sara Pinheiro
Atuação: Dimitrius Possidônio, Kelly Crifer, Juliene Lellis, Leonardo Lessa, Rita Maia e Robson Vieira
Voz em off: Fernanda Vianna (Grupo Galpão) e Lucas Vianna
Participação em vídeo: Otto Levy
Assessoria vocal e musical: Ernani Maletta
Cenário: Ed Andrade
Figurinos: MarneyHeitmann
Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho
Trilha sonora: Dr. Morris
Vídeos: André Amparo e Chico de Paula
Produção: Maria Rita Fonseca
Patrocínio: Arcelor Mittal, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, e Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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