Crítica
Em 18 anos, o Grupo Grial de Dança já havia enveredado por quase todos os terreiros da cultura popular nordestina. Das influências ibéricas à força e expressão dos brincantes de maracatu rural e cavalo-marinho, as manifestações das entranhas do povo brasileiro foram aos palcos revisitadas pelos passos contemporâneos da companhia pernambucana. Faltava apenas um olhar mais apurado para os legados dos povos negros escravizados que trouxeram para nosso Brasil os encantos e riquezas das divindades da natureza. Lacuna que o grupo preenche com Abô, espetáculo que estreou na última quinta-feira (28/5) e cumpriu temporada até domingo (31/5) no Sítio Trindade, no Recife.
Com direção da bailarina e coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo – fundadora do Grupo Grial junto com o escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna –, a montagem traz no seu cerne a ideologia do Movimento Armorial: pensar a cultura nacional a partir de um olhar delicado sobre as marcas e heranças que convergiram para a formação da identidade brasilíada.
Em Abô, dois intérpretes negros desenham em cena uma percepção poética da mitologia dos orixás. Longe de qualquer didatismo ou até mesmo ritualismo, a dramaturgia explora características corporais e essenciais dos deuses africanos: dos mistérios de Exu à fúria dos ventos de Iansã, os bailarinos ainda passam pela sensualidade de Oxum, a maternidade de Iemanjá, a força de Ogum e o feitiço de Ossanha. O espetáculo não envereda por celebração ou reprodução de movimentos, mas nos propõe a refletir sobre onde e de que maneira estão presentes essas heranças e características em nós.
Anne Costa, que é bailarina profissional, é o ponto de equilíbrio dançante do espetáculo. Seu corpo une a expressão do feminino tão inerente ao culto afro, sem deixar de lado a energia bruta da força dos orixás. É no corpo de Anne em que estão mais visíveis as marcas da coreografia de Maria Paula: os pés espalmados no chão, de quem pisa com certeza de onde está pisando, e as mãos e os braços amplos, herança dos brincantes populares.
Dividindo a cena com Anne está o percussionista Lucas dos Prazeres, que faz sua estreia no elenco do Grial com Abô. Embora não seja bailarino profissional, Lucas teve explorados de Maria Paula sua relação com o culto afro (resultando numa dança sintonizada com a performatividade dos terreiros) e a sua excelente musicalidade – ele toca e canta ao vivo, também. A dupla termina por criar em cena, de maneira satisfatória, uma entrosada relação típica do Grupo Grial: o brincante em sintonia com o erudito.
O Adê (coroa do orixá) em tamanho gigante, no centro do palco, é um símbolo de convergência da dramaturgia. Sob e diante do objeto, os bailarinos criam suas interpretações. Saem de perto dele, mas sempre retornam. É ancestralidade que está ali. O norte de tudo. A origem e o fim. Nisso, Abô se iguala a Terra (2013) – até então a última peça da companhia e solo com o qual Maria Paula Costa Rego ganhou o Prêmio APCA de melhor intérprete – quando a areia e a lona que forrava o chão significavam o abraço e o pertencimento à origem indígena.
No tangente à composição visual da cena, cenário e figurino de Abô, criados por Gustavo Silvestre, exploram o preto como predominância. Pauta-se pelo neutro, a desconstrução do colorido que habita o universo dos terreiros. O fato que causa estranhamento transforma-se, porém, com as cores da luz dançante e poética de Jathyles Miranda, que possibilita ao espetáculo uma percepção ainda mais apurada sobre o subentendido.
o Grupo Grial ratifica seu pensamento Armorial e o expande, uma vez que toma o ritual afro como base e o decodifica pelos passos da dança contemporânea
Um fator determinante neste espetáculo é a trilha sonora assinada por Lucas dos Prazeres e Berna Vieira. Enquanto os batuques marcam os passos dos bailarinos, os ruídos do som eletrônico dilatam os movimentos contemporâneos.
Com Abô, o Grupo Grial ratifica seu pensamento Armorial e o expande, uma vez que toma o ritual afro como base e o decodifica pelos passos da dança contemporânea. É uma prova de quem compreende o Armorial – assim como faz o artista plástico Dantas Suassuna, nas suas criações visuais. É a prova da renovação das ideias. O princípio permanece, a criação não é estática – segue viva e pulsante.
.:. Publicado originalmente no blog Terceiro Ato, do Jornal do Commercio, em 1º/6/2015.
.:. O site do Grupo Grial, aqui.
Ficha técnica:
Direção: Maria Paula Costa Rêgo
Com: Anne Costa e Lucas dos Prazeres
Trilha sonora: Lucas dos Prazeres e Berna Vieira
Figurinos e cenário: Gustavo Silvestre
Luz: Jathyles Miranda
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).