Crítica
6.7.2015 | por Helena Carnieri
Foto de capa: Gilson Camargo
Poucos artistas na cidade de Curitiba se permitem encenar textos de Paulo Leminski, e o Catatau, seu romance-monstro, assusta ainda mais. O experimentalismo da linguagem pede uma encenação também ousada, o que o diretor e compositor Octávio Camargo providenciou, mais textualmente do que nos demais recursos de seu Catatau – A justa razão aqui delira, em cartaz até 19 de julho.
Camargo chamou a atenção durante o último Festival de Teatro com seu projeto Iliadahomero, que está levando ao palco monólogos com atores e atrizes que estão dando conta da totalidade dos cantos da Ilíada.
O fato de ter escolhido agora o Catatau comprova seu interesse por obras de peso, sempre com projetos que duram décadas para amadurecer. Para manusear Leminski com a devida dose de homenagem, o diretor convocou o programador Guilherme Soares para um trabalho de “criptodramaturgia”. Não exatamente para “decodificar” os subtextos do poeta, e sim para criar a partir deles uma obra nova. Estão em cena cinco personagens, que, de acordo com Camargo, “compõem a mitologia central do Catatau”: o Ai Brasilienseis, que representa o espírito selvagem de fauna, flora e humanidade brasileiros; Cartesius, brincadeira com o pioneiro da razão moderna, René Descartes; Artchewski, nobre artilheiro polonês “exilado por convicções luteranas”, pela qual Leminski faz referência a suas raízes; X9, o dedo-duro da ditadura, e Occam, o “monstro perturbador da linguagem”.
São os seres que surgem em “livros” elaborados a partir da coleta seletiva de trechos feita por Soares. O resultado são monólogos que as atrizes Claudete Pereira Jorge, Chiris Gomes e Helena Portela encenam como se estivessem conversando. A escolha de elenco feita a dedo resultou em atuações repletas de presença artística, especialmente nos olhares que elas destinam umas às outras.
Consoante com o texto em que se baseia e o interesse de Leminski pela poesia concreta, a montagem intercala cenas esparsas, às quais a figura das atrizes dá unidade
Claudete e Chiris são veteranas dos palcos, quase sempre optando por trabalhos experimentais. E Helena mostra neste Catatau que veio mesmo para ficar, com marcante amadurecimento nos últimos anos.
Consoante com o texto em que se baseia e o interesse de Leminski pela poesia concreta, a montagem intercala cenas esparsas, às quais a figura das atrizes dá unidade. Algumas escolhas de encenação se destacam, como o posicionamento da plateia nas portas ao redor do palco do Teatro Novelas Curitibanas. A inevitável redução da visibilidade é compensada com o uso de quase uma dezena de espelhos, pelos quais é possível enxergar os olhares das atrizes pelos cantos da sala.
Em um dos momentos de maior inspiração cênica, as portas repletas de público são iluminadas e observadas pelas personagens como se fossem jaulas em que a exuberante fauna brasileira estaria sendo exibida ao personagem Renatus Cartesius.
Em outro, a personagem Eulália enfileira uma sequência de frases do Catatau começadas com “eu”, ao mesmo tempo em que ilumina seu rosto com uma lanterna diante de cada um dos espelhos.
De maneira geral, porém, cenário e figurino ainda poderão ser mais bem trabalhos na carreira da peça, já que a opção pela precariedade de recursos requer uma “compensação” na encenação – que ocorre, por exemplo, na cena em que uma funcionária da burocracia datilografa nomes ditados – dedados? – por outra. Fantásticas.
Mas em outros momentos, em que o resultado não encanta, o espectador poderá se perder no hermetismo do texto e partir para outras terras imaginárias.
.:. Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo, Caderno G, p. 2, em 1º/7/2015.
Serviço:
Onde: Teatro Novelas Curitibanas (Rua Presidente Carlos Cavalcanti, 1.222, São Francisco, Curitiba, tel. 41 3321-3358)
Quando: Quinta a domingo, às 20h. Até 19/7
Quanto: Entrada franca (É necessário agendar a participação)
Ficha técnica:
Criptodramaturgia: Glerm Soares
Direção: Octavio Camargo
Com: Claudete Pereira Jorge, Chiris Gomes e Helena Portela
Iluminação: Beto Bruel
Projeto: Grafico Solda
Fotografia: Gilson Camargo
Composição musical: Glerm Soares e Octavio Camargo
15 pontos nos IIs (por Paulo Leminski)
1. O Catatau é a história de uma espera. O personagem (Cartésio) espera um explicador (Artiscewski). Espera redundância. O leitor espera uma explicação. Espera redundância, tal como o personagem (isomorfismo leitor/personagem). Mas só recebe informações novas. Tal como Cartésio.
2. A espera de Descartes/Cartésio é uma espera cibernética. A melhor definição para “informação”: expectativa frustrada. Toda informação nova vem de uma “expectativa frustrada”. O Catatau é uma imagem ampliada dessa noção.
3. Cartésio espera Artiscewsky. O leitor também tem uma espera. Uma expectativa. O que ele — antes de ler — já sabe da mensagem. Ou crê saber. Informação é expectativa frustrada. No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase para frase são regidas por leis outras que não as normas da sintaxe discursiva “normal”. Existe literalmente um abismo de frase para frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como na TV, entre ponto e ponto). Mesmo quando um segmento cobra continuidade (parece fazer sentido), é apenas para contrastar com o efeito contrário, que sucede sempre. Dentro do Catatau, o leitor perde a mania de procurar coisas claras. Então, aquelas que são claras por si mesmas tornam-se escuras no seu entendimento.
4. Se disserem que a expectativa permanente no Catatau acaba por se tonar um estado monótono (caógeno), digo que pretendi realizar um dos postulados básicos da cibernética: a informação absoluta coincide com a redundância absoluta. O Catatau procura gerar a informação absoluta, de frase para frase, de palavra para palavra: o inesperado é sua norma máxima. A seqüência das frases de um texto coloca uma lógica. Mas nessa busca da informação absoluta, sempre novidade, novidade sempre, por uma reversãode expectativa, ele produz a informação nula: a redundância. Se você sabe só vem novidade, novidades vêm, e deixa de ser novidade. O Catatau é, ao mesmo tempo, o texto mais informativo e, por isso mesmo, o texto de maior redundância. 0 = 0. Tese de base da Teoria da Informação. A informação máxima coincide com a redundância máxima. O Catatau não diz isso. Ele é, exatamente, isso.
5. Catatau (aparentemente) é uma “narrativa” em “primeira pessoa”. É uma ego-trip. A narrativa na primeira pessoa é a mais econômica. Eu. Reduz a multiplicidade do universo ao âmbito de um ego só. Economia de um quadro de Mondrian.
6. Catatau procura captar, ao vivo, o processo da língua portuguesa operando. E mostrar como, no interior da lógica todo-poderosa, esconde-se uma inautenticidade: a lógica não é limpa, como pretende a Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma farsa, uma impostura. O Catatau quer lançar bases de lógica nova.
7. Para o europeu, o Brasil soava absurdo, absurdo que era preciso exorcizar a golpes de lógica, tecnologia, mitologia, repressões.
7.1 O ritmo, não o metro. O Catatau registra direções, não assunto. Oftalmografa a passagemdas distâncias nas células fotoelétricas das afinidades eletivas; regula a articulação das partículas atéestas se descontrolarem, gerando leis de crescente complexidade, que já emergem precipitando novas catástrofes de signos. Por isso, atenção flutuante nas ex-abruptas passagens do sentido para o nonsense, do suspense para o pressentimento.
8. Ao Catatau, dois movimentos o animam: um, documental, centrífugo, extroverso, se dirige para uma realidade extratextual precisa (referente), com toda a parafernália de marcação duma ambiência física, geográfica, histórica e portanto épica; o outro movimento, estético por contraste (sístole cardíaca do Catatau), chega às raias subterrâneas e canais atávicos da linguagem e do pensamento. O significado (semântica) do Catatau é a temperatura resultante da abrasão entre esses 2 impulsos: a eterna inadequação dos instrumentais consagrados, face à irrupção de realidades inéditas.
9. O Catatau é um caso textual de “possessão diabólica”: um texto “clássico” é possuído (possesso) por um monstro “de vanguarda”, que é o próprio Catatau, chamado também de “Occam”, um princípio de perturbação da ordem, um agente subversivo, uma estática: o monstro é a personificação (prosopopéia) do conceito cibernético de ruído. As aparições do monstro fazem o texto voltar-se para si mesmo: o monstro é centrípeto. Ele denuncia o código em que a mensagem está sendo registrada.
10. Catatau é um texto em mutação: um mutante.
11. Na palavra “catatau”, animal e texto são sinônimos.
12. Catatau & psicopatologia. O ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartésio é o fiel retrato, em termos de realismo, do estado de espírito do colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, atônito: alienado. Um dos fenômenos mais típicos do “delirium tremens”, alcoólico é a zoopsia, alucinação com animais repugnantes: cobras, ratos, lagartos. E de zoopsia que Cartésio sofre no parque, vendo todos aqueles bichos absurdos. O parque de Nassau é um lugar mental. Todo o texto é um parque de palavras, sentenças, períodos. O Catatau é um parque de locuções populares, idiotismos da língua portuguesa, estrangeirismos. Seu polilinguismo é o reflexo do polilinguismo do Brasil de então onde se praticavam as línguas mais desencontradas: o tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos afros, português, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita, holandês, alemão, flamengo, francês, iídiche e até hebraico. Outro fenômeno psicopatológico transformado em recurso de base é o mentismo. Em psiquiatria, chama-se de mentismo um pensamento que vem por si, uma ideia fixa que vai e volta, contra o paciente, atingindo exatamente os pontos mais delicados de suas neuroses e psicoses. Mentismo ocorre sempre quando o personagem do Descartes/Cartésio recusa, repele ou nega um pensamento que acaba de ter. Ele sempre atribuiu esses mentismos a um efeito do clima ou da erva que fuma. É a presença de um corpo estranho no pensamento organizado de Descartes. Por isso, Descartes/Cartésio é o “heauntontimorúmenos” = “o atormentador de si mesmo”, nome de uma peça de Terêncio.
13. Catatau é um texto colocado sob o signo da Ótica, Descartes sendo um dos pais da Ótica como disciplina científica, parte da Física. Está cheio de anomalias óticas: refrações, difrações, desvios, que incidem sobre as palavras, as sentenças, a linguagem e a lógica.
14. O bestiário. A bicharada, com que começa o Catatau, emblematiza o pasmo do europeu (esse desbestificado), pasmo esse, choque e pânico que os antigos tinham na conta de fonte do filosofar (até para Aristóteles, o exercício da reflexão começava por um “thaumazein” | “espantar-se”). Ante esses animais, a lógica de Descartes vai para o brejo. Cada fera daquelas (tamanduás, jiboias, preguiças) estropiava uma lei de Aristóteles, invalidava uma fórmula de Plínio ou de Isidorode Sevilha. (p. 1-2) Ver bichos através/atrás de vidros, o longe crítico.
15. Mensagem afetada de elevado coeficiente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau está distribuída de maneira irregular.
Jornalista formada pela Universidade Federal do Paraná, instituição onde cursa o mestrado em estudos literários, com uma pesquisa sobre A dama do mar de Robert Wilson. Cobre as artes cênicas para a Gazeta do Povo, de Curitiba, há três anos. No mesmo jornal, já atuou nas editorias de economia e internacional.