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Crítica

‘O capote’ e a arte da sobrevivência

8.9.2015  |  por Gabriela Mellão

Foto de capa: João Caldas

O que é felicidade para você? Para o anti-heroi de O capote, marco da literatura russa do século XIX escrito por Nikolai Gógol, é um sentimento primitivo, que antecede a formação da sociedade.

A felicidade de Akaki Akakievitch, escrevente de uma repartição pública de São Petersburgo, é a sobrevivência. Dono de um veste puído, ele tem necessidade de um casaco novo para resistir ao inverno russo.

O protagonista vive à margem de sua comunidade. Escolhe renunciar a alguns dos poucos prazeres da vida, privar-se de jantar, tomar chá, entre outras ações elementares, em nome de sua subsistência.

No espetáculo O capote, em cartaz no CCBB SP sob direção de Yara de Novaes, Rodolfo Vaz encontra dentro de si um homem quebradiço e submisso, ainda que íntegro, para compor um Akaki memorável. Preenche de humanidade o ser desprovido de vínculos humanos.

Um interessante jogo de sobreposição de vozes e narrativas altera constantemente o ritmo do espetáculo, gerando uma permanente reconstrução de linguagem

Vaz, ator fundador do Grupo Galpão, vencedor do prêmio Shell SP de 2007 por sua atuação em Salmo 91, adaptação de Dib Carneiro Neto para o livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella, comove com o olhar esperançoso e o corpo assustado, cuja tensão parece ser usada como escudo contra a hostilidade do mundo em que vive – amainada em uma cena inesquecível em que Vaz canta e dança a felicidade de ter finalmente comprado um capote novo.

Akaki não faz mal a ninguém, apesar de ser alvo da tirania dos cidadãos do mundo que o rodeia, os quais neste espetáculo são interpretados por dois atores, Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas. A dupla se desdobra em diversos personagens opressores, além dos próprios narradores da história.

É acertada a opção da diretora Yara de Novaes de presentificar a narração, originalmente em terceira pessoa, dando corpo aos contadores da história. O feio acentua a violência a que o protagonista é a todo momento submetido.

As interferências de sons, executado ao vivo pela musicista Sarah Assis, acompanham a movimentação de Akaki, sugerindo que seu percurso na terra indefere ao de um marionete. Se por um lado o feito quebra a ilusão teatral e distância o envolvimento do público, por outro o envolve. Os ruídos dão tom cômico à obra, tornando mais profundo o mergulho na tragédia.

Rodolfo Vaz sob dramaturgismo de Pires via GógolLeekyung Kim

Rodolfo Vaz sob dramaturgismo de Pires, via Gógol

Cassio Pires é um dos grandes autores da nova geração, responsável por diversas transposições literárias para a cena, como Sonata a Kreutzer, de Tolstoi e Oe, de Kenzaburo Oe. Em O capote seu domínio dramatúrgico fica ainda mais evidente.

O texto, junção de seu trabalho de dramaturgista com o de adaptação de Drauzio Varella, é multifacetado. Um interessante jogo de sobreposição de vozes e narrativas altera constantemente o ritmo do espetáculo, gerando uma permanente reconstrução de linguagem.

Diante dos belos trabalhos de interpretação e criação de texto, o uso de projeções de vídeo torna-se desnecessário, assim como a cena de destruição final do espetáculo (evocação do caos). O capote não precisa de artifícios para ser grande.

.:. Leia crítica de Maria Eugênia de Menezes a O capote.

Serviço:
Onde: CCBB SP (Rua Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo, tel. 11 3113-3651/3652)
Quanto: Segunda e sábado, às 20h; dom., às 19h. Até 21/9
Quanto: R$ 10

Ficha técnica:
Texto: Nicolai Gógol
Adaptação: Drauzio Varella
Dramaturgismo: Cássio Pires
Direção: Yara de Novaes
Com: Rodolfo Vaz, Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas
Assistência de direção e preparação corporal: Kenia Dias
Musicista: Sarah Assis
Cenografia e figurinos: André Cortez
Trilha sonora e música original: Dr Morris
Vídeo arte e design de projeção: Rogério Velloso
Criação de luz: Bruno Cerezoli
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Arte e projeto gráfico: Lápis Raro
Fotografia: João Caldas
Coordenação de produção SP: Marlene Salgado
Produção: Oitis Produções Culturais e Rose Campos

Autora, diretora e jornalista teatral. Pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC-SP, estudou Cultura e Civilização Francesa na Sorbonne, em Paris, e Dramaturgia e História do Teatro Moderno em Harvard, Boston. Escreve para Folha de S.Paulo e revista Vogue. Compõe o júri do prêmio APCA de teatro. É autora e diretora de Nijinsky - Minha loucura é o amor da humanidade (2014), peça convidada a integrar o Festival de Avignon de 2015. Tem cinco peças encenadas, Ilhada em mim – Sylvia Plath (indicada ao prêmio de melhor direção pela APCA de 2014); Espasmo (2013); Correnteza (2012); Parasita (2009), A história dela (2008), além de um livro publicado com suas obras teatrais: Gabriela Mellão – Coleção primeiras obras. Lecionou Laboratório de Crítica Teatral para o curso de Jornalismo Cultural na pós-graduação da Faap, entre 2009 e 2012. Foi crítica da revista Bravo! entre 2009 e 2013, ano de fechamento da mesma.

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