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Crítica

A cultura que se cola à pele das mulheres

15.11.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Hamilton Junior

Em São Luís

Não vem exatamente de um grupo ou companhia teatral o espetáculo Núpcias, apresentado na noite de quarta-feira na programação da X Semana de Teatro no Maranhão. Mesmo a palavra espetáculo, como termo significando produto de consumo cultural, talvez não lhe caiba, ao menos como ponto de partida. O Núcleo Atmosfera (NUA) que lhe dá origem foi criado há dez anos no âmbito do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal do Maranhãopor alunos da primeira turma do curso de licenciatura em teatro e pelo professor Leônidas Portella, com o objetivo de desenvolver pesquisa na linha da dança-teatro, entre outras hibridizações de linguagem.

O professor segue participando do projeto, é dele a direção de Núpcias, que tem como artistas-criadoras Rosa Ewerton, Cláudia Cabral e Marinildes Brito. Sabe-se que há muito o teatro conquistou a liberdade de realizar experimentos híbridos, agregando procedimentos de diferentes campos das artes para criar dispositivos cênicos que mais do que produtores de sentido, podem atuar como disparadores deles. Está fora de questão, na contemporaneidade, cobrar do teatro o enquadramento em padrões de formalização. Na origem de Núpcias parece estar o desejo de colocar em fricção diferentes materiais e procedimentos criativos – desde a manipulação de objetos, passando por ocupação de territórios da cidade até tomar o corpo como palco ou simplesmente usar as palavras como significantes –, sem valorizar nenhum deles em especial, sem uma situação específica ou fabulação.

Nessa vertente cênica, cabe ao espectador um importante trabalho de realizar conexões entre os diversos elementos postos em atrito, em superposição ou em deslocamento. Tais princípios não resultam em vale-tudo. Se não é preciso produzir sentido, é preciso produzir potência. Este último é sim parâmetro para todas as linguagens artísticas.

Em algum momento do desenvolvimento do trabalho as atrizes parecem ter se descolado do próprio corpo, desvitalizando as cenas, tornando ilustração o que deveria ser rito

Na primeira cena de Núpcias três noivas aparecem imóveis no alto de uma escadaria entre as muitas que ligam ruas de paralelepípedos ladeadas pelos casarões do século XIX que compõem o centro velho da cidade. Não é um conjunto acanhado, pelo contrário, são dezenas de quarteirões, centenas de casas, algumas conservadas, outras em ruínas, algumas com moradores de classe média, outras invadidas, algumas já transformadas em lojas de artesanato naquela linha turística que tudo iguala, outras com pequenos comércios tocados por antigos moradores. Com suas fachadas de azulejos, paredes de pedra e grandes arcoselas enchem os olhos e fazem pensar no que representa em termos de empobrecimento da população a negligência com que o conjunto é tratado. Ao mesmo tempo é temeroso pensar que uma possível recuperação do casario tocada por grupos de especulação imobiliária poderia achatar tudo pelo turismo ligeiro e provocar a chamada gentrificação, ou seja, a expulsão dos locais pela valorização dos imóveis.

Voltando à cena (sem tê-la abandonado de fato), numa dessas escadas, muito antiga, o trio permanece algum tempo estático, para depois começar a descer os degraus vagorosamente. O vestido de noiva é um signo forte, um objeto ainda capaz de acionar múltiplas emoções e significações. Carga que se amplia quando as noivas estão fora da sala teatral e postas em fricção com a arquitetura que fala simultaneamente de pujança e depauperamento.

No primeiro movimento aquelas mulheres não parecem noivas típicas. Não dão sorrisinhos para parentes e amigos.  Seus vestidos têm generosa abertura nas pernas e seus rostos são hieráticos, altivos, expressão (ou ausência dela) que remete às modelos e seus olhares no infinito, esvaziados de força vital. Tais fantasmagorias femininas são tensionadas naquele espaço também pelo som (involuntário) de um berimbau que vem da capoeira jogada em um casarão próximo e pela presença de famílias, gente que acompanha o movimento de alguns bares próximos, até mesmo crianças – a cidade e sua pulsação cotidiana.

As noivas não chegam até o último degrau. Interrompem a descida em um determinado ponto da escada, de novo ficam estáticas e aos poucos disparam num riso histérico que será emendado num choro. Logo depois elas arrancam e queimam numa fogueira os vestidos brancos. O primeiro rito sacrificial – outros virão – dessa criação que parece ter como fio condutor a exploração de facetas do comportamento feminino.

A sinopse publicada no material de mediação com o público mescla em período único um pequeno trecho de Medeiamaterial, de Heiner Müller, costurado a termos como corpo, feminino, fragmentos – e não contribui muito para compreender as bases da pesquisa e o processo de criação. Porém as imagens trazidas pelas atrizes permitem a aposta num trabalho moldado a partir de depoimentos pessoais e de pesquisa sobre o corpo feminino disciplinado pelo poder.

Atriz do Núcleo Atmosfera (NUA) em 'Núpcias'Divulgação/NUA

Atriz do Núcleo Atmosfera (NUA) em ‘Núpcias’

Porém, em algum momento do desenvolvimento do trabalho as atrizes parecem ter se descolado do próprio corpo, desvitalizando as cenas, tornando ilustração o que deveria ser rito. Um dos princípios da performance art, ser “única e efêmera” (termos que também aparecem na sinopse) não se funda na destruição de materiais – queimar um vestido só pode ser feito uma única vez – mas sim no grau de experiência que o ato provoca em quem faz ou vê. O espectador teria de acreditar que um aspecto da existência daquelas mulheres está ardendo com aqueles vestidos na fogueira. E nem seria preciso explicitá-lo. Importa que o ato tenha verdade, porque assim terá potência para mobilizar o corpo e mente do espectador que sempre sabe de sua própria “dor de existir”, do que precisaria ser arrancado de si, e quanto choro tal decisão provocaria. Quando não há fábula ou encadeamento de ações dramáticas, os estados emocionais ganham relevância. Mas quando pouco antes da queima dos vestidos as atrizes começam a tateá-los em busca provavelmente do dispositivo a ser puxado, então o artifício – que já tinha aparecido no falseamento do riso e do choro – se sobrepõe ao ato e o ritual se esvazia de potência para ser mera visualidade.

Fogueira ainda queimando em plena escadaria, somos convidados a entrar num espaço fechado. Ali, alguns outros ritos sacrificiais se seguem entre gozo, dor e frivolidade. Colar taças de champanhe ao corpo com fita crepe parece sinalizar o desejo de falar de comportamentos que se colam à pele das mulheres – uma das leituras possíveis – procedimento que se repetirá mais adiante com latas de refrigerante. Mas, contraditoriamente, é justamente na ausência de um corpo investido do material de trabalho que parece residir o maior problema do espetáculo. Sem isso, restam imagens ilustrativas sobre as quais é possível fazer leituras, mas serão sempre leituras distanciadas, e não fruto de uma experiência de interação com a obra poética.

.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). A jornalista viajou a convite da organização.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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