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Crítica

Militância e rito em ‘Soledad’

26.11.2015  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Rick Rodrigs

“E ainda tem gente que pede a volta da ditadura militar. Respeitem quem foi torturado”. A frase de revolta da atriz Hilda Torres, em Soledad, é uma das muitas observações que a pernambucana traz para sua revisitação à história da guerrilheira e militante paraguaia assassinada pela polícia, em 1973, em Pernambuco [Soledad Barret Viedma, da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, morta ao lado de outros cinco companheiros].

O monólogo épico desponta como um dos poucos trabalhos encenados neste ano, no Recife, lançando clarão sobre os ecos daquele período obscuro da história do Brasil e ainda atuais na contemporaneidade. O trabalho foi apresentado no dia 24/11, no Teatro Hermilo Borba Filho, dentro do Festival Recife do Teatro Nacional.

A veemência do discurso indica uma investigação aprofundada e situa a personagem entre os muitos outros companheiros taxados de subversivos, presos e até mortos àquela época

Na cena, Hilda sustenta no seu corpo e na sua voz uma Soledad universal, dissolvida na história de tantas outras mulheres que sofreram com a repressão e a violência dos ditadores. Seguindo um caminho de composição documental, a encenação compila os momentos relevantes da vida da guerrilheira, desde seu nascimento à morte. O texto de Hilda e Malú Bazán (que também dirige a peça), baseado no livro Soledad no Recife, de Urariano Mota, plaina por lembranças e se ergue pelas referências de outros companheiros de militância de Soledad. O volume dos relatos e a costura deles no monólogo deixa descoberta uma construção superficial, evidenciando bem mais os fatos do que a emoção.

Hilda cria um papel híbrido, representando a dor de sua personagem em uma excessiva e viciada ofegância da fala. Num cenário de poucos elementos e um luz quase em penumbra, a intérprete evoca inúmeras vezes sua própria voz e coloca em segundo plano a protagonista: esmiúça a gênese do processo de criação, sinaliza as associações cabíveis da história passada com os fatos atuais (ela critica, por exemplo, discursos contra os ensinamentos libertários de Paulo Freire) e chama ao palco um enfático e pragmático debate político.

Hilda Torres atua e coescreve no solo sobre a guerrilheiraRick Rodrigs

Hilda Torres atua e coescreve a obra

A biografia da militante potencializa o olhar e a narrativa feminina sobre a repressão e as posições fundamentalista contemporâneas que afrontam o legado daqueles que lutaram pela liberdade e igualdade social nos anos de chumbo. E pode ser muito bem atualizado para o hoje, quando debates de gênero e respeito às mulheres trazem à tona vilões silenciados pelo machismo tão em voga na sociedade. Soledad foi morta após ser entregue à polícia pelo seu próprio companheiro, Cabo Anselmo.

A simbologia dos mitos à qual recorre a encenação dá reforço a essa voz do feminismo. A força de uma mulher que pegou em armas e foi à luta é reforçada no uso dos arquétipos de figuras como a orixá Nanã – mulher de representação forte no candomblé. Os seios à mostra, no início do espetáculo, o ato de se banhar nas águas e a evocação de ancestrais indígenas também sublinham uma celebração aos antepassados e apontam para um teatro de ritos. Uma forte e emblemática marca são as duas cruzes gamadas, as suásticas, gravadas pelos militantes neonazistas como cicatrizes nas pernas da protagonista.

Soledad tem um perfil afetivo, mexendo com a memória das pessoas que viveram o período de ditadura. O visível engajamento político de Hilda Torres lhe permite, entretanto, estar disponível à cena de maneira artística e militante. A veemência do discurso indica uma investigação aprofundada e situa a personagem entre os muitos outros companheiros taxados de subversivos, presos e até mortos àquela época – todos eles evocados nas leituras dos fichamentos e dos processos criminais. É um espetáculo reflexivo, avivado somente pelo tutano da história.

.:. Publicado originalmente no blog Terceiro Ato, em 25/11/2015.

Ficha técnica:
Atriz e idealizadora: Hilda Torres
Direção: Malú Bazán
Dramaturgia: Hilda Torres e Malú Bazán
Pesquisa histórica: Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán
Pesquisa cênica: Hilda Torres e Malú Bazán
Concepção de cenário e figurino: Malú Bázan
Execução de cenário e figurino: Felipe Lopes e Maria José Lopes
Luz: Eron Villar
Operação de Luz: Eron Villar e Gabriel Félix
Direção musical: Lucas Notaro
Arte visual: Ñasaindy Lua
Produção: Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán
Produção executiva: Karuna de Paula
Assessoria de imprensa: Alexandre Yuri

Teaser: Ivich Barrett e Rafael Cabral
Consultoria do idioma guarani: Adrián Morínigo Villalba

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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