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Crítica

Um recital interrogado pela realidade

16.11.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Dinho Araújo

Em São Luís

Numa arte presencial e territorial como o teatro, o empenho pode ser tão importante quanto o desempenho. O objeto artístico que nasce da necessidade irrefreável de expressar inconformidade com algum aspecto da vida social ou da existência tende a produzir relevância de alguma ordem mesmo se os recursos de linguagem nele investidos são precários. Já um ponto de partida frágil, por exemplo, baseado em vaidade ou oportunidade, pode tornar inócuas as formalizações mais elaboradas. Mas quando é preciso dialogar com uma cena cujo processo pouco se conhece, a tentativa de interlocução coloca o crítico na mesma situação do artista-palhaço, ou seja, diante da possibilidade do tombo que expõe os fundilhos rotos da ignorância. Não importa de que lado da ribalta se está, há que correr risco.

É difícil compreender a gênese do solo da atriz e palhaça Nilce Braga, Eles e nós, apresentado na X Semana de Teatro no Maranhão. A forma remete ao recital de poesias, mas o pensamento envereda pela trilha da autoajuda com frases de apelo ou aconselhamento sobre a busca da felicidade. Inocência ou ardil? Uma breve investigação sobre o trabalho revela que o solo de mesmo título já integrou a sexta edição da mostra, em 2011. Na ocasião a sinopse dizia tratar-se de “poética combinação de dança, música, teatro, poema e poesias” com textos de “Shakespeare, Fernando Pessoa, Florbela Espanca e Cecília Meirelles, entre outros”. No mesmo texto havia uma explicação para o título: “eles” seriam os poetas que teriam expressado para e por “nós” o que não alcançamos dizer.

É da natureza do teatro o trabalho em processo. Quando uma montagem teatral perdura no tempo pode sofrer desde o esgarçamento de sua linguagem até o seu aprimoramento. E mesmo que nada mude, muda a cultura no entorno e com ela a recepção à obra. De volta ao solo, quatro anos depois, a sinopse está alterada. Agora diz que é um “convite a sair temporariamente da rotina” para olhar a vida “de um ponto de vista amável e otimista”, um convite “para resgatar a força interior e a sensibilidade” esquecidas “no ritmo da vida contemporânea”. Como era antes não se pode mais saber. O que terá ocorrido nessa passagem de tempo?

Na persona que Nilce Braga criou para a sua palhaça, neste espetáculo ao menos, não há espaço para tropeços, nem se tangencia o grotesco

Em uma primeira hipótese, o papel de mediadora entre a plateia e uma literatura de maior envergadura foi cedendo espaço para um depoimento pessoal – difícil reconhecer as vozes citadas na primeira sinopse no texto da nova versão – talvez a voz de uma Florbela Espanca ressoando em algum verso. Será que quem brincava de princesa se acostumou na fantasia, como na canção de Chico Buarque? Talvez não por acaso, o pronome mais ouvido em cena foi “eu”. Os textos costurados na dramaturgia são apresentados de tal modo que parecem ter como tema os amores e dores da própria atriz e como objetivo compartilhar sua filosofia de vida (feliz): “precisamos nos inundar de nós mesmos para depois nos compartilharmos” ou “doe uma lágrima para rosto que não chora” são dois entre muitos aconselhamentos, aqui puxados de memória, palavras talvez aproximadas. Talvez sem se dar conta, Nilce adota uma atitude prescritiva na condução do roteiro. Talvez seja mesmo sua intenção, como acena na síntese mais recente por meio da qual fala de seu trabalho.

Na persona que criou para a sua palhaça, neste espetáculo ao menos, não há espaço para tropeços, nem se tangencia o grotesco. Ao contrário disso, ela entra pela plateia do Teatro Arthur Azevedo com seu nariz vermelho, regador cheio de flores na mão e uma delicadeza infantil, beirando o tatibitate, perfil que contrasta com a segurança com que escolhe com quem do público quer interagir. E o faz antes desde o momento de sua entrada em cena, antes mesmo que qualquer cumplicidade tenha sido estabelecida. Diante de um dedinho que aponta de modo docemente autoritário, ao espectador só cabe o papel de aceitar mais ou menos incomodados ou correr o risco de ser grosseiro em sua negativa. Na noite acompanhada todos evitaram a segunda opção. E alguns constrangimentos eram bem evidentes. Merece registro a qualidade do desenho de luz assinado por Nina Araújo. São variações de densidades e de tons alcançadas pela articulação de recursos simples e variados como tiras de lâmpadas de LED, pequenos spots no proscênio e um refletor manipulável pela atriz. Não é uma iluminação de show. Cada efeito instaura uma atmosfera com potência para agir sobre a poética e sobre a recepção.

A atriz Nilce Braga em 'Eles e nós'Marcos Gatinho

A atriz Nilce Braga em ‘Eles e nós’

Se grande parte da dramaturgia soa um pouco como diário pessoal, há momentos que merecem atenção pelo modo como se articulam à realidade, como na cena em que a atriz, ajoelhada diante de um oratório suspenso por fios no palco, pede “humildade para ser feliz no seu casebre”. Tal pensamento, que salvo engano não é desestabilizado por qualquer ironia, parece perpassar a escolha das imagens em vídeo projetadas em dado momento. Bastante divulgadas nos meios virtuais, trata-se de uma sequência de imagens aceleradas de transito de pessoas e veículos em locais como cruzamentos de ruas dos centros urbanos, catracas de metrôs, fábricas de componentes eletrônicos, movimentos repetitivos que exibidos em velocidade perdem o contorno das formas, o que intensifica o efeito de exaustão. Na montagem, é possível ver em seguida imagens de pintinhos vivos jogados como objetos sobre uma esteira para depois caírem em um grande triturador e saírem despedaçados do outro lado. Encerrado o vídeo, é projetada uma foto, cujo tempo de exposição é por si só contraponto ao ritmo anterior, a imagem de uma família em seu casebre, pai, mãe e filhos, descalços e sorridentes. A sequência provoca um tipo de fricção que parece criada com o objetivo de tornar positiva a situação da pobreza material. Quando, em determinado momento, a atriz diz ser “uma empresa e, como tal, responsável pela própria falência”, a frase soa como se o espetáculo estivesse mesmo enveredando para o viés do teatro corporativo.

Na mesma noite da apresentação, no caminho para o teatro, havia um grupo de rappers se apresentando num pátio da cidade velha, entre os casarões de pedra. Um deles criticava com veemência o crescente encarceramento dos pobres no Maranhão e dizia que tal equívoco no tratamento da violência urbana ainda levaria a periferia a tomar o poder. Horas antes, também naquele dia, Paris fora atingida por atentados terroristas. O artista é alguém que interroga o mundo e a si mesmo. E quando um deles tenta contornar essa tarefa, a realidade interroga sua arte.

.:. Escrito no contexto da X Semana de Teatro no Maranhão, em São Luís (9 a 15/11). A jornalista viajou a convite da organização.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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