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Crítica

A pertinência de Brecht

22.12.2015  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Ricardo Brajterman

A nova montagem de A Santa Joana dos matadouros, que encerrou temporada no Teatro Glaucio Gill, no Rio, segue à risca certas plataformas do teatro brechtiano, particularmente no que se refere a colocar em prática o famoso distanciamento (ou estranhamento) para que o público não estabeleça uma conexão alienada, ilusionista, com o que assiste. Brecht não assumiu postura contrária ao entretenimento ou mesmo ao vínculo emocional entre espectador e espetáculo, mas ressaltou a importância de um senso de medida. A partir de dado momento, o espectador deveria adquirir consciência em relação à fábula descortinada diante dos seus olhos, ao invés de considerar a ficção como realidade. Para comprometê-lo com os temas levantados nas obras, Brecht se valeu de vários procedimentos denunciadores da mecânica da cena, como, entre tantos outros, fazer com que o ator interprete mais de uma personagem (o espectador se depararia com o ator entrando e saindo de diferentes personagens e ficaria impedido de travar identificação direta e passiva com alguma delas) e se afaste ocasionalmente da personagem para portar a voz do autor.

É como se por trás de uma camada houvesse sempre outra, como se não fosse possível subtrair rumo ao encontro de uma base comum, um marco zero

Marina Vianna e Diogo Liberano (que assina dramaturgia sobre o texto original, traduzido por Roberto Schwarz) dirigem a montagem com clareza didática. Logo no início da apresentação, a quarta parede é quebrada por meio da atriz Adassa Martins, que, em trajes contemporâneos, se posiciona de frente para o público, realçando a atualidade da sua fala. Há notadamente um desejo de inclusão do espectador, de conduzi-lo a um posicionamento, a tomar partido, diante do panorama de discrepância econômica e social entre ricos e pobres, do estado dos anulados por um sistema perverso, do jogo de manipulação comandado pelos poderosos que leva os menos favorecidos a firmar acordos nada justos.

A cena é propositadamente construída diante da plateia. No começo do espetáculo, os atores entram, tiram diversas camisas e as estendem sobre o palco. Retiram sucessivas camadas de roupa, como se o objetivo estivesse em chegar à exposição do próprio corpo. Mas a pele raramente desponta. É como se por trás de uma camada houvesse sempre outra, como se não fosse possível subtrair rumo ao encontro de uma base comum, um marco zero, como se não existisse o indivíduo puro, desvinculado das interferências do mundo, como se a perda da inocência não pudesse ser evitada. Não por acaso, os atores voltam a sobrepor camisas nos bastidores para retirá-las em seguida. Aparentemente rascunhados, improvisados, os figurinos, como se pode perceber, evidenciam conceito, assim como os demais elementos integrantes da encenação.

Brecht codirigido por por Marina Vianna e LiberanoFrancisco Costa

Cena de montagem da peça de Brecht

Responsável pela direção de arte, Bia Junqueira demonstra participação fundamental na concepção do espetáculo. A cenografia vai surgindo aos poucos diante do espectador, a julgar pela já mencionada superfície composta pelas camisas dos atores e pelos engradados dispostos em cena, sugerindo linha de produção em série. Os dois ganchos vermelhos suspensos simbolizam os matadouros – centrais na “trama” de Brecht, ambientada durante rigoroso inverno em Chicago, em meio à crise de 1929 – e uma das formas geométricas delineadas no palco é potencializada pela iluminação de Paulo César Medeiros, de modo a acentuar a sensação de opressão, que oscila entre contrastes (entre a claridade dura e um tom algo crepuscular). A intencional revelação da construção da cena é complementada pela presença do músico no palco (Arthur Braganti, que divide a direção musical com Rodrigo Marçal). O elenco – Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo – explicita plena adesão ao projeto. A partir de um entendimento minucioso do texto, existe uma preocupação em dizê-lo bem. Ainda que haja eventuais destaques – Leonardo, João e Adassa –, os atores se somam num conjunto orgânico, entrosado.

A Santa Joana dos matadouros se impõe como um trabalho coerente que afirma fidelidade a Brecht sem, porém, que isto signifique apego a convenções. Marina Vianna e Diogo Liberano mostram que o texto continua lançando questões pertinentes nos dias de hoje.

.:. Publicado originalmente no blog danielschenker.wordpress.com

Ficha técnica:
Autor: Bertolt Brecht
Tradução: Roberto Schwarz
Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção: Marina Vianna e Diogo Liberano
Com: Adassa Martins, Gunnar Borges, João Velho, Leandro Santanna, Leonardo Netto, Luisa Arraes, Sávio Moll e Vilma Melo
Direção de arte: Bia Junqueira
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção musical: Arthur Braganti e Rodrigo Marçal
Músico em cena: Rodrigo Marçal
Direção de movimento: Laura Samy
Produção executiva: Marcelo Mucida
Direção de produção: Ana Lelis
Realização: Moinho Produções
Idealização: Marina Vianna e Luisa Arraes

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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