Crítica Militante
Precisamos desenvolver a sensibilidade histórica para que ela se torne um verdadeiro deleite sensual. Quando nossos teatros apresentam peças de outros períodos, eles gostam de aniquilar a distância, preencher as lacunas, minimizar as diferenças. Mas onde então fica o prazer derivado das comparações, da distância, da dissimilitude – que é, ao mesmo tempo, um prazer vindo daquilo que é próximo e próprio a nós mesmos?
Bertolt Brecht
“Inspirar movimentos de aproximação entre o teatro e aqueles que lutam por justiça social”: tal o objetivo do primeiro volume da coleção Cadernos de Teatro e Sociedade, editado pelo Laboratório de Teatro e Sociedade (LITS) em parceria com a editora Expressão Popular. O projeto do grupo de estudos e laboratório, encabeçado por pesquisadores e artistas da Universidade de São Paulo, teve como mote não só publicar algumas peças relativas ao momento de fértil “hegemonia cultural de esquerda”, mas recriá-las crítica e pictoricamente com base nas experiências cênicas daquele período.
Não à toa, o passo inicial envolveu a publicação de Mutirão em novo sol, obra escrita coletivamente, em 1961, por Nelson Xavier, Augusto Boal, Benedito Araújo, Hamilton Trevisan e Modesto Carone, que permanecia inédita até então. Na edição, a porosidade existente nos anos 60 entre o meio artístico e os movimentos sociais é sublinhada pelas mais variadas interferências dos pesquisadores, a saber: a presença de notas de rodapé ao longo da peça, marcando as diferentes versões do texto; os depoimentos de alguns participantes das montagens; a documentação fotográfica; as partituras das canções utilizadas no espetáculo e os estudos críticos produzidos por acadêmicos da área.
Em meio a tamanho turbilhão de informações concedidas ao leitor, prevalece o contraste entre o horizonte revolucionário no campo social e cultural, explícito em Mutirão em novo sol, e o incessante “empilhamento de vitórias” do capitalismo atual. Aos desavisados, a obra parece ser mais uma daquelas “deformações esquerdistas em que os cidadãos sentem afinidade com os que sobraram” (SCHWARZ, 1999). Decerto, a inevitabilidade do olhar anacrônico resvala na ausência de perspectivas da esfera artística em relação ao futuro e na quase impossibilidade de construir uma significativa resistência frente ao aprofundamento das fraturas sociais. No entanto, o livro demanda uma visada mais abrangente, que não se restrinja somente à obra tomada de forma isolada, mas que a absorva dialeticamente como parte de nosso movimento histórico, isto é, como fruto significativo de um passado que deixou seu rastro na contemporaneidade.
Escrita em colaboração por Nelson Xavier e Augusto Boal, no início dos anos 60, ‘Mutirão em novo sol’ pode ser considerada uma das poucas obras de teatro que tratou o acirramento das lutas de classe através da temática rural e do ponto de vista dos camponeses
Para indicar a necessidade de procurarmos saídas no labirinto da história (talvez, a desilusão da desilusão, de Machado de Assis?!), nada mais pertinente do que retomar uma experiência cênica sobre uma das maiores rebeliões camponesas do interior de São Paulo ocorrida em Santa Fé do Sul, entre 1959 e 1960. A história foi contada aos membros do Teatro de Arena pelo presidente da Associação dos Lavradores da cidade, Jôfre Corrêa Netto, no mesmo dia em que o líder camponês foi libertado da punição por capitanear o levante rural do Arranca Capim. Tratava-se de uma luta empreendida contra latifundiários que, com o intuito de alargar a extensão de suas terras para a criação de gado, impediam o exercício da agricultura de subsistência por colonos da região. Estimulados por Jôfre Corrêa Netto, os trabalhadores passaram a arrancar o capim plantado pelos grandes proprietários, numa atitude de rebeldia frente à ameaça da desterritorialização. Com isso, de acordo com Clifford Andrew, “Jôfre, ao lado de Francisco Julião, advogado e presidente de honra das Ligas Camponesas, se tornaram símbolos da emancipação da classe trabalhadora do campo”.
A escrita de Mutirão em novo sol deu-se poucas semanas após a conversa com Jôfre, em janeiro de 1961, e sem dúvida marcou um processo de conciliação prática do Teatro de Arena com um trabalho artístico coadunado com o agit-prop, estabelecendo contato direto com o público popular, fosse no campo ou na cidade. Ao todo, foram seis apresentações envolvendo o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco e os Centros Populares de Cultura (CPC) de São Paulo e da Bahia, entre 1961 e 1964. Em entrevista ao LITS, Ricardo Ohtake menciona o processo criativo da obra:
A gente, do grupo de estudantes secundários, teve a ideia de usar esse tema do Jôfre para fazer uma peça. Bom, aí nós começamos a trabalhar. Éramos meninos de 17 anos e nunca tínhamos escrito uma peça de teatro (…). Augusto Boal chegou um dia e disse: “Olha, eu vou ajudar vocês”. Ele começou a estruturar a história toda e, além disso, ele trouxe o Nelson Xavier para ajudar a escrever a peça. O Boal fazia para cada cena aquilo que no cinema se chama “argumento”. Ele passava o “argumento” para o Xavier, que o organizava (…). Depois, foram aparecendo mais umas pessoas, três advogados, que resolveram participar da feitura da peça, fazendo os diálogos propriamente ditos. O Boal batia naquela máquina manual, devia ser uma Olivetti (…). Essa peça ficou pronta em uma semana, foi uma coisa impressionante.
Essas novas possibilidades de atuação no tecido histórico parecem ter sido impulsionadas justamente pela situação de ruptura enfrentada pelo Arena com a saída de alguns de seus membros, como Vianinha, Chico de Assis e Nelson Xavier. É nesse ponto que se dá a passagem de um teatro de tom documental, analisado por Boal como teatro fotográfico, a outro ideologicamente mais comprometido diante das injustiças sociais. O objetivo tornava-se, dessa forma, apreender as contradições da arte de esquerda para que, enfim, o teatro conseguisse mobilizar um salto qualitativo para além do terreno estético.
A questão, mantida até então sob o tapete por Boal e debatida incansavelmente por João das Neves e Oduvaldo Vianna Filho, sobre o caráter legítimo de um teatro de bilheteria destinado a um público pequeno burguês – pagante, portanto –, passou a exigir dos artistas um comprometimento não só com a democratização da arte, mas com o exame crítico da função do teatro enquanto fenômeno social.
Talvez por esse mesmo motivo, como bem lembra Sara Mello Neiva, Augusto Boal recupere indiretamente Mutirão em novo sol ao contar a quase parábola de Virgílio, o primeiro camponês a desafiar a posição confortável em que se encontravam alguns artistas engajados da época. Em suas memórias imaginadas, o teatrólogo menciona a apresentação de uma peça exclusivamente para camponeses no Nordeste, provavelmente em Recife, que terminava exortando o público a lutar pelo seu direito à terra: “A terra pertence a quem a trabalha! Temos que dar nosso sangue para retomá-la dos latifundiários”. Foi nesse momento que Virgílio, um líder local emocionado com a mensagem, sugeriu que o elenco utilizasse suas armas para auxiliar os trabalhadores do campo na batalha contra os mandos e desmandos do coronel. O grupo de artistas, então, viu-se obrigado a explicar a diferença entre representação e realidade ou, nas palavras de Boal, entre engajamento e responsabilidade: “Esse episódio me fez compreender a falsidade da forma mensageira de teatro político, me fez entender que não temos o direito de incitar seja quem for a fazer aquilo que não estamos preparados pra fazer”.
O curioso é que Mutirão… consegue não só insuflar o espírito nacional-desenvolvimentista de aspiração a uma consistência interna entre os intelectuais/artistas e as classes mais pobres, mas também defender a legitimidade de uma revolução capitaneada pelos próprios camponeses, ainda que sejam levados pela figura de um líder heroicizado. Em outras palavras, o protagonismo popular ganha terreno na obra à medida que o acirramento da luta de classes mostrava ser algo decisivo para a esquerda nacional.
A peça é estruturada a partir do julgamento do camponês insurgente, Roque Santelmo, tangenciando algumas experiências soviéticas e piscatorianas com o teatro tribunal. Assim, o público tornava-se parte integrante da cena, sendo capaz de refletir lucidamente sobre o problema apresentado, bem como sobre propostas de solução ao embate dos camponeses. Aqui, a necessidade da epicização é revelada na trama dramatúrgica da obra: logo na primeira cena Mutirão… apresenta o processo de julgamento de uma rebelião já ocorrida e, portanto, fora do eterno presente do drama burguês. O tempo é sistematicamente fragmentado tanto pelas lembranças das ações passadas quanto pelas inúmeras canções e coros entoados pelos camponeses. Vale lembrar que os discursos proferidos por Roque em defesa própria são entremeados pela rememoração dos fatos que desencadearam o conflito dos camponeses contra o proprietário de terras, Porfírio. É aí que o fantasma do drama volta a assombrar nosso teatro. Porque tal rememoração, com o intuito de gerar o efeito empático na plateia, além de ressaltar a liderança de Roque ao longo da jornada dos trabalhadores, é presentificada no palco em forma de flashbacks, diminuindo o alcance do distanciamento narrativo.
Em linhas gerais, vislumbramos a trajetória dos colonos desde a proibição da semeadura por Porfírio até a ameaça de despejo, que tinha como objetivo estender o plantio de capim e aumentar a criação de gado. Daí, o movimento da obra passa, então, a satirizar o poder judiciário e clerical como instrumentos de perpetuação do status quo e, portanto, subordinados aos interesses dos mais ricos. Após recorrerem sem sucesso à justiça, os camponeses coletivamente resolvem saquear o armazém e fundar uma União dos Trabalhadores em resistência ao coronelismo. Por fim, todos os colonos entoam a canção do Arranca Capim enquanto o tribunal ordena a reapropriação das terras por Porfírio. No entanto, o impulso que eleva o canto coral ao fim subtrai qualquer medida de repressão: “Os lavradores sabem que estão juntos e que juntos ninguém pode com eles. Vocês sabem que não podem destruí-los.”
As principais montagens do espetáculo envolveram uma série de expedientes relacionados às condições práticas de cada localidade. A primeira, levada a cabo pelo CPC de São Paulo durante a I Conferência Estadual dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, serviu como uma espécie de ensaio de uma obra ainda em processo de amadurecimento. De acordo com Juca de Oliveira, a apresentação ocorreu em um palco improvisado para cerca de 600 trabalhadores do campo, os quais auxiliaram a fomentar um acalorado debate junto a professores, estudantes e sociólogos sobre as condições de vida do campesinato. O ator relembra que os espectadores não raro participavam do espetáculo, interferindo nos diálogos e no transcurso das ações, uma vez que as situações expostas no palco eram por eles enfrentadas cotidianamente
Foi a partir dessa primeira montagem que surgiu a necessidade de flexibilizar os diálogos e propor algumas mudanças no texto, incorporando as sugestões emergidas no debate. Ainda no mesmo mês, a peça, já modificada, ganhou imenso destaque durante sua apresentação no I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, em Belo Horizonte, justamente por colocar em primeiro plano a luta dos trabalhadores rurais. O evento contou com a participação de alguns dos mais importantes líderes políticos do país, como o então presidente João Goulart, Tancredo Neves, Francisco Julião e Jôfre Corrêa Netto.
Após essas duas montagens históricas, Nelson Xavier assumiu a direção do espetáculo com o elenco do Movimento de Cultura Popular e do Teatro de Cultura Popular, atividade que resultou numa das mais produtivas e progressistas de nosso teatro. Tendo seu título modificado para Julgamento em novo sol (de acordo com Luiz Mendonça, a palavra mutirão não era utilizada no Nordeste), a peça fazia parte de uma incursão pedagógica de Xavier no Recife, onde oferecia cursos de dramaturgia e laboratórios de atuação. Além de reunir milhares de trabalhadores rurais, a montagem no Teatro de Santa Isabel contou com uma significativa preocupação estética que, por sua vez, objetivava criar diferentes quadros a cada cena, remetendo ao cinema expressionista de Eisenstein. A recepção foi tão calorosa que atores e público uniram-se para cantar em uníssono todas as canções presentes na obra. Evidentemente que, com isso, a divulgação de Mutirão… aumentava de forma visível, tanto que o elenco viajou a Brasília no avião da Força Aérea Brasileira a convite do presidente da República, João Goulart.
Às acima mencionadas seguiram-se outras montagens. No entanto, não podemos deixar de assinalar a mais recente delas, resultado de uma grande conquista do campo artístico frente ao aprisionamento mercadológico de todos os dias. No dia 21 de agosto de 2012, ou seja, 51 anos após sua primeira encenação, Mutirão em novo sol foi adaptada pelo núcleo da Brigada Semeadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Distrito Federal. O acontecimento, em boa parte promovido pelo professor da Universidade de Brasília, Rafael Villas Bôas, enfatizou o aspecto didático da peça, capaz de fomentar a discussão sobre novas possibilidades de atuação e organização dos trabalhadores. Segundo Bôas, a opção por apresentar o espetáculo à tarde resultava de uma maior compreensão sobre a função social da arte para além do entretenimento: “Foi o momento do debate político, o momento da formação, sinal da maturidade com que as organizações têm encarado a dimensão formativa da produção cultural”.
Vista em retrospectiva, com o olhar atento às dissimilitudes e às proximidades entre os dois tempos, Mutirão em novo sol pode ser considerada uma das poucas obras de teatro que tratou o acirramento das lutas de classe através da temática rural e do ponto de vista dos camponeses. Assim, conseguiu, a um só tempo, engendrar e catalisar um maior interesse dos artistas em levar adiante uma proposta de fazer artístico “ético”, pensado a partir de suas condições produtivas num continente em que mais da metade da população sobrevivia no cenário agrário. É através do didatismo e da potência das imagens presentes nos diálogos, que Mutirão em novo sol extrai sua força artística e assume seu caráter processual justamente por apostar na incompletude da trama dramatúrgica em relação ao impacto da cena no trâmite entre palco e plateia.
As condições materiais e a possibilidade de atuar junto a movimentos sociais, cerradas em 1964, foram em parte responsáveis pela emancipação de uma forma teatral que buscou, em primeira instância, que o espectador duvidasse do que estivesse vendo, inclusive se a ficção não poderia conter em si mais realidade do que a vivência no mundo, onde todos eram um tanto forçados, ainda que inconscientemente, a descolar-se do real. Daí, o tom didático exprime o que há de melhor: a simplificação assume como força propulsora o salto qualitativo da reflexão, que – aos mais otimistas – poderá guiar o processo de conscientização coletiva.
Está aí o valor da obra editada pelo LITS em parceria com a Expressão Popular: oferecer uma espécie de sinalizador ao barco à deriva. Ou, quem sabe, arriscar múltiplas respostas frente ao assombro da pergunta: quem somos nós nesse tempo e nesse processo?
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Mutirão em novo sol (200 páginas, R$ 20)
Autores: Nelson Xavier (peça) e Augusto Boal (coautoria)
Editora: Expressão Popular (2015)
Trecho:
Mutirão em novo sol:
ROQUE – Eu já fui condenado, mas não perdemos a luta. Os lavradores sabem que a terra é deles e de mais ninguém. Eu sei o que é a cadeia; sei quanta pancada vou levar; sei quanta fome vou passar; sei quanta sede vou sentir. E sei de tudo, e os lavradores também sabem que estão juntos e que juntos ninguém pode com eles. Vocês sabem que não podem destruí-los. São eles os que trabalham e, se eles não existissem, vocês tinham que trabalhar, tinham que pegar no cabo do guatambu e o juiz tem mãos finas, o delegado e o coronel têm mãos por demais finas. Vocês sabem que sem nós vocês não existiam. A lei me condenou e a lei é certa e justa; mas é certa e justa para quem a fez. Nós ainda não fizemos a nossa lei. E quando a fizermos, a nossa lei será certa e também será justa. Mas as duas não são iguais. A de vocês é a lei de quem explora; a nossa é a lei de quem trabalha. A de vocês me condena; a nossa, me há de libertar. A nossa lei há de libertar todos os trabalhadores do mundo. Senhor Juiz, senhor Representante, essa gente não para nunca.
XAVIER, Nelson. Mutirão em novo sol. São Paulo: Expressão Popular, 2015, pg. 80.
Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.