Resenha
20.6.2023 | por Ana Marinho
Foto de capa: Asley Ravel
Tatiana – Você não é muito exigente, eu sei. Mas o que é que há de interessante aqui?
Teteriev – As pessoas ajustando suas vidas. Eu adoro ouvir os músicos no teatro afinando os violinos, os sopros.
Máximo Gorki, Pequenos burgueses
As tantas vezes em que Fernando Teixeira assistiu ao espetáculo Pequenos burgueses, trinta e seis, me conduzem nessa tentativa de apresentar sua autobiografia, um texto escrito por um ator e encenador de teatro paraibano que viveu e vive mais de 60 anos com as gentes do teatro, com as gentes das artes e da cultura, com as gentes que vivem no risco, que visitam lugares de trauma, seus, nossos, de tanta gente, mas, principalmente, lugares de encontro. São encontros, mais do que desencontros que aparecem na narrativa de Fernando e são eles que importam. Lugares em que o humor e a alegria de um homem que olha para trás, para o trás ontonte, nos ensinam sobre os processos de autoconhecimento. E digo lugares porque os lugares são sempre políticos, estão nos caminhos cotidianos da conquista, da ocupação, da luta. Fernando lutou a vida inteira, e luta ainda, por lugares nos quais as vidas importem, as viventes e os viventes possam olhar para trás e fazer, como ele, um percurso de aprendizagem. Fernando não ensina, aprende, apreende, numa narrativa autobiográfica que não segue modelos, deslisa por gêneros de escrita de si, de escritos sobre si, sobre nós, sobre a gente.
Era o ano de 1964, ano do golpe e início de uma ditadura civil-militar cujos reflexos ainda nos assombram, aperreiam, assuntam. Pequenos burgueses tinha estreado no ano anterior, no Teatro Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa, e seguia em temporada com substituições no elenco. Nas informações sobre o espetáculo, disponíveis na Enciclopédia Itaú Cultural, chama a atenção, além dos muitos prêmios recebidos pela encenação, a presença da atriz Esther Góes que, muitos anos depois, vive uma personagem ao lado de Fernando Teixeira na série Chão de estrelas, dirigida por Hilton Lacerda. Mas é a produtora do espetáculo, Etty Fraser, que possibilita ao Fernando migrante, saído de uma peregrinação por várias cidades da Paraíba, o encontro com o teatro. Diz ele que em São Paulo, na rua Líbero Badaró, em plena região central, dá de cara com o cartaz e uma fotografia de Célia Helena e Wolney de Assis – era o cartaz do espetáculo Pequenos burgueses. No mesmo cartaz havia uma nota: “Curso de teatro! Com o ator Eugênio Kusnet”. E foi aí, nessa São Paulo da década de 1960, que foram traçados os caminhos do ator, encenador, diretor Fernando Teixeira.
E nos damos conta, nesse percurso de idas e vindas, do Nordeste ao Sudeste, de carro, Kombi, ônibus e caminhão, que a relação de Fernando Teixeira com a obra de Gorki ultrapassa a experiência de assistir tantas vezes ao mesmo espetáculo. (…) Nesse exercício de olhar para trás, de pensar o que veio antes do ontem, Fernando afina toda uma orquestra em que participam atores e atrizes, iluminadoras/os, produtoras/es, cenógrafas/os, mecenas, políticos dessa província Parahyba. O concerto segue entre sopros e acordes, afinados ou não, mas, sempre em exercício
As falas de Fernando não nos ajudam a compor uma linha de percurso linear e confesso que lá pela metade do livro, depois de sofrer bem muito, decidi deixar de lado a minha formação de historiadora e professora de literatura, por ofício e destino, que sente falta da diacronia, e me deixei enlaçar pela experiência de atriz que me salva de tantos enredos e que me fez rir e chorar ao ler e ouvir a voz de Fernando. Digo voz porque algumas das histórias que ele narra já ouvi pela sua boca mesmo e é muito privilégio. Mas li relatos de quem viu, durante uma das apresentações de Pequenos burgueses, a tampa do piano cair sobre as mãos de Tatiana (Célia Helena): “maldosamente empurrada por Teteriev (Raul Cortez), picuinha de ex-marido.” (p. 46-7). Diz Fernando:
Minha assiduidade ao espetáculo me dá hoje a clareza de que o que eu mais buscava vendo tantas vezes aquela obra-prima, além da lição, era também a minha família; pais, irmãos que eu os havia deixado para trás por desentendimento de adolescente e me lançado ao mundo e ali, no teatro, as discussões daquela peça tinham palavras diferentes, mas o sentido era idêntico aos do sofrimento que eu sentia. (p. 47)
A narrativa segue nos mostrando caminhos trilhados numa São Paulo marcada pela ditadura e pela impossibilidade de atuar no espetáculo dirigido por Pedro Bandeira, do Centro Popular de Cultura (CPC) da Rua Santo Amaro; pela censura da peça O capeta de Caruaru, de Aldomar Conrado, com direção de Antonio Abujamra e produção de Ruth Escobar. Nesses lugares de não, Fernando decide trabalhar como auxiliar nas produções de filmes de Aurora Duarte. E o trabalho era o seguinte: “pegar os rolos filmados (em Salvador), levá-los para revelação, em São Paulo e trazê-los de volta. Nos dias que ficava em Salvador, era fiscal de portaria no cinema que estava exibindo A morte comanda o cangaço.” (p. 51). Demitido por dizer que não gostava do filme produzido por Aurora, segue estrada e é nas viagens de Kombi, já em outro serviço, realizando entregas em hospitais no interior de São Paulo, que faz o que mais gostava de fazer: “Eu adorava viajar porque era nas estradas que a imaginação se soltava e eu virava o criador que gostaria de ser, e assim, entrei em um processo que achava ótimo; inventar estórias e vivê-las, sofrer, chorar, atiçar a vítima e afundar na rejeição.” (p. 70)
Há também os muitos trajetos por cidades da Paraíba, marcados pela imagem de um menino ““encapetado, incendiário, que vivia debaixo de peia”: Conceição – Campina Grande – Mamanguape – Cajazeiras – Picuí – Patos – João Pessoa – Remígio – Cuité. E nos damos conta, nesse percurso de idas e vindas, do Nordeste ao Sudeste, de carro, Kombi, ônibus e caminhão, que a relação de Fernando Teixeira com a obra de Gorki ultrapassa a experiência de assistir tantas vezes ao mesmo espetáculo. O autor russo nunca teve uma educação formal, foi jardineiro, aprendiz de pintor, cantor de coro, padeiro. Fernando, que foi tanto disso tudo e que construiu uma vida, uma família, nas engrenagens do teatro, poderia dizer o que diz a personagem Piôtr, no ato I, em resposta a uma provocação de Tatiana sobre os dramas “cheios de choros, lamentos e soluços. (…) É tudo uma mentira. A vida destrói as pessoas sem choros, sem gritos… sem lágrimas… imperceptivelmente.”. Diz a personagem: “Eles representam dramas sobre o tema do sofrimento amoroso, mas ninguém dá atenção aos dramas que dilaceram a alma de uma pessoa dividida e pressionada entre o querer e o dever…”
Em 1965 Fernando volta para João Pessoa e aí começa a trajetória do dramaturgo que, desde então, nunca parou de dirigir, encenar e produzir uma cena Tabajara, tão bem descrita e assim nomeada por Duílio Cunha em sua tese de doutorado. Duílio que é também autor do posfácio do livro. Trajetória que passa pelo teatro do estudante, pelo grupo oficinal do Teatro Santa Roza e pelo teatro universitário, mas que é consolidada nas montagens seguidas, ano a ano, do Grupo de Teatro Bigorna por ele fundado ainda em 1968. No depoimento sobre a montagem do texto Navalha na carne, de Plínio Marcos, em que também atuava como Veludo, ouvimos o Fernando de hoje em diálogo com o pai:
Quando encerrou a apresentação meu pai subiu no palco, passou por trás de mim e disse baixo no meu “pé do ouvido”: – Isso está muito bem feito para ser uma imitação? Fiquei puto, porém logo em seguida contando o fato a Jomar Muniz de Brito, um intelectual de maior importância para todos nós, ele riu e disse: – Fernado essa foi a melhor crítica que você recebeu, pois você enganou seu pai. (p. 64)
As andanças por cidades do interior da Paraíba, diferentes das anteriores, como exilado da casa dos pais, são viagens de quem quer viver de teatro. Em Princesa Isabel monta espetáculos com o financiamento da prefeitura e escuto a sua voz narrando mais uma história:
Quando não estava ensaiando, ficava nos bares bebendo, ou em casa jogando buraco. Certa vez, emendamos o dia e a noite até de manhã, jogando buraco. Pela manhã saímos eu e Regina para comprar umas coisas na feira, que era na frente da casa, quando Regina baixou e pegou uma grande concha de banana e começou a contar… 7, 8, 9, dez, valete, dama, rei. (p. 69)
Há também as memórias de uma cidade João Pessoa que descrevem percursos marcados por encontros com pessoas como Nautília Mendonça, Lucy Camelo, Luiz Carlos Vasconcelos, Marcos Careca, Buda Lira, Zezita Matos. Roberto Cartaxo, entre tantas outras.
Seguimos lendo sobre acertos e erros, acordos e desacordos entre artistas, familiares, políticos, agentes de cultura, gente que faz teatro, que atrapalha, que se assemelha, que semeia. E Fernando semeia e assume que precisava aprender a ser tolerante, principalmente quando relata a sua experiência no audiovisual. Diz sobre as tretas entre Pernambuco e Paraíba que nem o cinema consegue resolver. Tenho a impressão de que os tubarões de Boa Viagem estão mesmo só à espera da barreira do Cabo Branco ceder mais um pouquinho para atravessarem essa fronteira. Quem sabe assim a gente se encontre e as linhas divisórias demarcadas em tempos coloniais, e que seguem em práticas colonialistas, terminem por ruir. Mas isso é motivo para outra conversa porque ainda temos as piadas, muitas delas que hoje condenamos e com razão. Piadas que dizem sobre os anos de convívio com Ednaldo do Egypto que só mesmo quem escuta Fernando contando, e sonha em conhecer esses dois juntos, consegue rir e muito.
Sobre a experiência como professor da UFPB deixo aqui uma das estórias que mais gosto:
Em uma das apresentações da Donzela [Joana, de Hermilo Borba Filho, de 1977] no palco da antiga reitoria, fizemos uma rotunda com painéis de exposição para criar, por trás, um espaço de troca de roupas e que aconteciam várias vezes. Na esquerda alta, no fundo do palco, a orquestra se posicionava. Certo dia, um músico bebeu em demasia e veio pra apresentação bêbado, tombou e, para não cair, encostou-se ao primeiro painel à sua frente que como um dominó, foi caindo um atrás do outro, a maioria das meninas de calcinha, sem sutiã se jogando no chão e os homens de cueca correndo de um lado para o outro sem saber o que fazer. Isso com a plateia já presente. Blecaute total. (p. 104-5)
Há também o percurso de produtor, a saga de vender um Passat para pagar um show de Marina Lima que foi um fiasco de público; a escrita de dramaturgias como Um tomate esmagado por um carro, sobre um guerrilheiro que consegue fugir do Araguaia e se esconder na Paraíba; imagens de espetáculos que dirigiu, encenou, atuou…
Eu vivia de dar aulas como professor-prestador e de fazer teatro. Quando um espetáculo era bom, rendia uma bilheteria que ficava entre os atores e diretor. O que nós queríamos era fazer espetáculos. Não havia editais ou outro projeto qualquer que patrocinasse cultura. Eu sempre levantava o espetáculo pedindo em lojas e quanto eu aparecia, eles diziam: lá vem o cigano. (p. 152)
Nesse exercício de olhar para trás, de pensar o que veio antes do ontem, Fernando afina toda uma orquestra em que participam atores e atrizes, iluminadoras/os, produtoras/es, cenógrafas/os, mecenas, políticos dessa província Parahyba. O concerto segue entre sopros e acordes, afinados ou não, mas, sempre em exercício. E deixo aqui uma imagem construída por esse homem do teatro, do cinema, das artes, que enquadra cenas e constrói planos, já que vou ficar devendo ao/à leitor/a todo o seu percurso pelo cinema brasileiro:
Meu pai gostava de tomar banho em uma grande piscina que existia em Mamanguape, próxima a nossa casa chamada Sertãozinho e foi lá que aprendi a ter medo de água, pois as brincadeiras dele comigo era assim: ele me jogava dentro da água e como eu não sabia nadar, ele pulava atrás e me salvava. (p. 24)
Serviço
Trás ontonte
Fernando Teixeira
Ágora-Pep, 2023 (e-mail agoracep@yahoo.com.br, tel. 83 99306-9919 e tel. 83 3218-4383)
208 páginas
R$ 40,00
Referências
PEQUENOS Burgueses. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento392380/pequenos-burgueses. Acesso em: 01 de maio de 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
LIMA, Duílio Pereira Cunha. Encenação Tabajara (1975 – 200): memórias, tendências e perspectivas no teatro de João Pessoa. Tese de doutorado em Literatura e Interculturalidade – Universidade Estadual da Paraíba. 2016.
Faz teatro desde os 19 anos em João Pessoa (PB). Formada pela escola de teatro da Fundação Espaço Cultural José Lins do Rêgo. Atuou nas peças ‘Filhos da noite’ (1989), ‘Medeamaterial’ (1996), ‘Quebra-quilos’ (2010), ‘Quincas’ (2012) e ‘Razão para ficar’ (2015); nos filmes ‘Desvio’ (2018) e ‘O que os machos querem’ (2021); e na série ‘Chão de estrelas’ (2021). “O que paga minhas contas é mesmo o ensino de literatura na Universidade Federal da Paraíba, desde 2001. Estou investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para pensar e escrever sobre cidades-mulheres e memórias de luta e resistência. Até outubro de 2022, quando volto para um Brasil que acredito e que desejo reviver”.