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Gravura de Lerrouge e Bernard a partir do artista francês Jacques Etienne Arago (1790-1854) mostra o movimento de pessoas e o Teatro São João no Rio de Janeiro, sob regime imperial, então principal sala do século 19 no país; detalhe da imagem estampa a capa do livro ‘Teatro e escravidão no Brasil’, de João Roberto Faria

Resenha

O teatro e a obscena escravidão

29.4.2023  |  por Jessé Oliveira

Foto de capa: Divulgação

A história é sempre um ponto de vista construído à imagem e semelhança dos vencedores e das classes dominantes, e sob recortes de raça e gênero. O Brasil elaborou sua história, educação, economia, política e, não seria diferente, o campo das artes seguindo os mesmos paradigmas, especialmente nas artes da cena. Não à toa, a lógica do teatro brasileiro foi uma história obscena, pensando obscenidade como aquilo que deve estar longe dos olhos e causa vergonha, no caso do Brasil, sob o manto da escravidão. Há que se colocar esta narrativa sob a luz do sol, o melhor remédio, a exemplo do que faz o pesquisador João Roberto Faria no livro Teatro e escravidão no Brasil.

Sabe-se que as culturas de matrizes africanas constituídas em solo brasileiro sofreram apagamentos cíclicos, com momentos de manifesta importância e outros de retrações cientificamente elaboradas. O epistemicídio é apenas uma das formas de desconstrução civilizatória do povo sequestrado em África. No Brasil, a população negra contribuiu não somente com mão de obra, como se afirmou repetidamente, mas com saberes ancestrais desde a mineração, agricultura, pecuária, espiritualidade e a cultura artística.

Importante destacar, panoramicamente, as hierarquias sociais no Brasil desde antes da Abolição, compreendendo a importância de certas esferas – como as artística, eclesiástica e militar – para o desempenho de possibilidades de ascensão às pessoas negras e mestiças. Vale notar o caso da música sacra desenvolvida no período colonial por compositores e músicos negros, tais como Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) e Florêncio José Ferreira Coutinho (1750-1819), assim como José Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), Mestre Valentim (1745-1813) e outros artistas visuais negros e mestiços. Portanto, não foram poucos os trabalhos de artistas e intelectuais na literatura, música e artes visuais. O que aconteceu foi um apagamento, restando a noção de que a contribuição negra no Brasil tenha se dado exclusivamente como mão de obra subalternizada.

Há que se perguntar o que está dentro e o que está fora de cena, e a obra ‘Teatro e escravidão no Brasil’ buscou respostas suficientemente imparciais para tais questionamentos num período histórico em que a obscenidade racista ainda determinava um padrão de teatro. O pesquisador João Roberto Faria nos aponta as dramaturgias e produções desviantes. Mostra que o teatro não foi somente omisso, mas também estava preocupado com transformações sociais, ainda que de forma tímida e sem a força que adquiriu ao longo dos anos e, especialmente, a partir de meados do século 20

Diante desse contexto, a Editora Perspectiva nos apresenta uma publicação de fundamental importância de um autor consolidado como um narrador da historiografia teatral brasileira. A obra dá conta de um período histórico de meio século – 1838 a 1888 – propondo a análise de obras dramatúrgicas e produções que abordaram a questão da escravidão sob diversos aspectos formais e conceituais.

João Roberto Faria ombreia com pesquisadores da estatura de Décio de Almeida Prado (1917-2000), Jacó Guinsburg (1921-2018), Fernando Peixoto (1937-2012) e Lothar Hessel (1915-2007). Sem exagero algum, faz um mergulho histórico, aliás, de revisão histórica, lançando luzes sobre períodos fundantes da cultura brasileira, nos quais o papel do negro era sonegado ou projetado de formas estereotipada e esquemática no panorama teatral vigente. Uma história obscena, nunca é demais repetir.

Crítico, historiador e professor sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Faria é um pensador branco que ousa e transgride acerca da tradição historiográfica e intelectual do teatro brasileiro eurocentrado. Num esforço em refletir e ofertar material para futuras pesquisas, o livro abre lacunas e preenche vazios. É seu primeiro trabalho exclusivamente dedicado ao tema, uma vez que havia abordado questões afins de forma transversal em outros textos.

Em um momento de revisão de conceitos frente à histórica luta em prol dos direitos civis, em especial da luta antirracista empreendida pelo movimento negro brasileiro e internacional, pelas lutas políticas – e hoje ganhando amplitude em diversos campos de disputa de poder, incluindo o universo acadêmico –, a obra se constitui como um fértil instrumento para aprofundar os estudos teatrais e as demandas compreendidas no âmbito dos conflitos no drama, dadas as contendas antiescravagistas iniciadas ainda no século 19, desenvolvidas no campo dramático, nos palcos e nas estantes.

Há que se perguntar o que está dentro e o que está fora de cena, e a obra buscou respostas suficientemente imparciais para tais questionamentos num período histórico em que a obscenidade racista ainda determinava um padrão de teatro. Faria nos aponta as dramaturgias e produções desviantes. Mostra que o teatro não foi somente omisso, mas também estava preocupado com transformações sociais, ainda que de forma tímida e sem a força que adquiriu ao longo dos anos e, especialmente, a partir de meados do século 20.

Importante, antes de tudo, lembrar que no Brasil o racismo teve seu amparo na ordem jurídica, visto que durante todo o período colonial a legislação naturalizava o escravismo por meio de um conjunto de normas legais que permitiam esta prática como princípio aceito. Após a Abolição outras leis sucederam e todas reforçaram a manutenção do papel subalterno das pessoas negras. Leis que impediam o povo negro de adquirir terras e frequentar escolas atestam esta cultura jurídica brasileira.

Marcos Freire/Flickr Participante em preparativos para a manifestação do ‘Nego fugido’, em 2016, teatro de rua popular que ocorre no Acupe de Santo Amaro, na Bahia, recriando a luta da libertação das pessoas escravizadas, uma tradição mantida desde o século XIX e herdada da população de origem Nagô

Ainda que devam ser resguardadas as diferenças entre o que hoje chamamos de teatros negros ou teatralidades afro-brasileiras contemporâneas, podemos fazer algumas relações entre as experiências abordadas na presente publicação e o que podemos chamar de moderno teatro negro. Uma possível definição para teatro negro é a produção realizada por artistas negros, que tratam da temática étnico-racial, fazendo a discussão política, histórica e cultural negra e, principalmente, tenha pessoas negras em todas as etapas da produção – ou, no jargão das ciências sociais de orientação marxista, que detenham os meios de produção.

Nesse sentido, temos um teatro como espaço de reflexão e luta política, hoje uma ferramenta de discussão da realidade, de representação e representatividade negra. Seguramente esta categoria não podia, em sua maioria, ser aplicada aos modelos empreendidos até então, mas podemos dizer que foram gatilhos disparadores de uma consciência racial desencadeada pelo teatro engajado na luta abolicionista. Na maioria dos casos referenciados no estudo em tela tratava-se mais de experiências empreendidas por autores brancos já preocupados com uma tomada de consciência e propostas de transformação do modelo de exploração escravista.

O corpo é histórico e reúne memórias e ancestralidades. No caso dessa obra, são poucas as experiências analisadas em que as presenças negras possuíam vozes autônomas sem a mediação do autor ou produtor branco. Contudo, a publicação faz jus às lutas desses insurgentes.

Um dos aspectos enfocados diz respeito às representações presentes nas encenações. Entre elas, como os corpos mais claros adquiriam um significado, com a intenção de sensibilizar o público e, por vezes, os personagens descendentes de escravizados eram de cores mais claras, ora para denunciar as relações interraciais não consentidas, ora para atenuar a violência sofrida pelas pessoas de peles mais escuras. 

Por exemplo, em Os filhos da desgraça, de Apolinário Porto-Alegre (1844 1904), membro do Partenon Literário, o enredo trata dos amores de uma mulher branca por um escravizado de pele clara. Com nítida intenção de provocar no espectador/leitor a repulsa à escravidão, a peça foi inicialmente proibida pelo chefe da polícia da capital do Rio Grande do Sul.

Que olhares a retina de um pesquisador branco pode projetar na discussão de um teatro que retrata a presença negra, em especial de pessoas escravizadas no âmbito da dramaturgia brasileira há quase dois séculos? Como pode contribuir, um século e meio depois, para a superação de ideias cristalizadas, de preconceitos e estereótipos? São perguntas emergidas da leitura a partir do olhar e do universo intelectual do autor que faz um esforço ao refletir criticamente e se distinguir como uma voz antenada a seu tempo, o agora, e comprometida com a igualdade racial.

Estruturada cronologicamente, aspecto que em geral prejudica análises mais complexas, a publicação mostra-se eficaz e didática para o desenvolvimento dos temas enfocados com rigor científico e com dados precisos. Analisa peças teatrais, material de imprensa, documentos históricos ao longo de 50 anos, revelando que um tema que agora soa como óbvio era a transgressão não aceita, não assimilada e combatida pela hegemonia racial. O conteúdo acompanha as transformações legais como fim do tráfico negreiro, Lei do Ventre Livre e Abolição.

O ponto de partida é a obra do dramaturgo Martins Pena (1815-1848), um dos precursores na abordagem da escravidão como temática e discussão crítica do sistema de exploração de pessoas negras escravizadas na roça e na cidade. Os sete capítulos contemplam ainda O Conservatório Dramático e a censura à escravidão, A escravidão nas peças românticas e realistas, Dramaturgia antiescravista nas províncias (Rio Grande do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco), a peça A cabana de Pai Tomás nos palcos brasileiros, Dramaturgia antiescravista de autores franceses e portugueses e, por fim, O teatro e a Abolição. Logo, um vasto arcabouço.

Beatriz Villela Elenco da Companhia de Jovens Atores, do Centro Universitário Teresa D’Ávila (Unifatea), em cena da montagem de 2016 dirigida por Caio de Andrade a partir de ‘O juiz de paz na roça’ (1833), peça de Martins Pena que serve de ponto de partida para a pesquisa do historiador João Roberto Faria em ‘Teatro e escravidão no Brasil’

Como Faria anota na introdução: “até a decretação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, mais de cem peças teatrais foram escritas, publicadas e encenadas em todo Brasil, nas quais se encontram críticas à escravidão e à sociedade escravocrata. O repertório aqui estudado é, portanto, bastante abrangente, formado principalmente por dramas e comédias. Não foram poucos os autores que se sensibilizaram com a questão servil, como verá o leitor”.

O estudo abarca diversos autores como Agrário de Menezes, Ana Chaves Guimarães, Arthur Azevedo, Artur Rocha, Carlos António Cordeiro, França Junior, Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, Paulo Eiró e Valentim José da Silveira Lopes, entre outros e por todo o território nacional, num arco bastante completo.

No quarto capítulo o pesquisador destaca a produção dramatúrgica desenvolvida nas províncias ou, como relata: “ocorre uma saudável descentralização e em várias províncias surgem autores engajados na mesma luta pelo fim da escravidão”. Pontua ainda o surgimento, em 1869 e 1870, das associações emancipadoras na Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Ceará, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo com papel de propaganda política em favor do ventre livre. É oportuno registrar a obra de Artur Rodrigues da Rocha, nascido na cidade de Rio Grande (RS) em 1859 e falecido em 1888, ano da Abolição da Escravidão no Brasil. O autor que teve suas peças publicadas e encenadas foi também ator e jornalista, criou a Sociedade Dramática Particular Ginásio Dramático, em 1883, num estado hoje com uma pequena população negra e bastante conservador. Entre as obras de Rocha estão A filha da escrava e O filho bastardo.

Em todas as áreas o negro esteve relegado a um papel de invisibilidade. Como se parte da população que representa hoje – mais de 50% de indivíduos no país – pudesse ser escondida. Assim também procedeu a dramaturgia brasileira, bem como os realizadores de teatro no Brasil. O negro, na esfera teatral, era representado de forma subalternizada, caricata, inferior e maniqueísta, quando não apagado.

Em última análise, Teatro e escravidão no Brasil é um livro que vale uma leitura atenta. Se não dá todas as respostas necessárias, propõe reflexão e material para desdobramentos. A escravidão não é um problema do passado, mas uma chaga do presente e um desafio para o futuro. Nesse sentido, Faria se mostra comprometido em tirar a obscenidade de seu campo seguro no tocante aos efeitos históricos da escravidão.

Ao buscar uma epistemologia do teatro negro no Brasil, estamos trilhando um caminho de afirmação cultural e buscando a legitimação intelectual de todo um povo. Mas a consolidação do teatro negro contribui também para reforçar o reconhecimento. Afinal, se o indivíduo tem sua imagem liberada dos estereótipos poderá se sentir mais confiante, reconhecido, e com isso potencializar sua autoconfiança, assim como a solidariedade de raça, reforçando a noção de autoestima.

O autor ainda sublinha que: “em todo Brasil, foram escritas, representadas e publicadas dezenas de peças teatrais comprometidas, em maior ou menos grau, com a causa da abolição. Lamentavelmente, boa parte desse repertório permaneceu inédita e se perdeu, o que limita o alcance da análise e interpretação do conjunto. Mesmo assim, com informações colhidas nos jornais da época sobre as encenações e as publicações, é possível avaliar a contribuição de cada produção dramática para o debate então em curso no país”.

Compreendo que não é possível analisar o passado com as mesmas categorias científicas da atualidade, mas é importante reconhecer que lutas empreendidas há mais de um século e meio produziram contribuições para o presente das artes da cena e, principalmente, atuaram como elementos de luta antiescravista.

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Serviço:

Teatro e escravidão no Brasil

João Roberto Faria

Editora Perspectiva, 2022

416 páginas

R$ 104,90

Gestor cultural, curador e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS e fundador do Grupo Caixa-Preta. Dirigiu mais de 40 espetáculos que incluíram circulações por Brasil e América Latina. Encenou ‘Das pferd des heiligen’, na Alemanha. Recebeu o prêmio uruguaio Florêncio de melhor montagem estrangeira por ‘Hamlet sincrético’. Publicou livros nos campos do teatro de rua e teatro negro. É coordenador de artes cênicas de Porto Alegre.

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