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Crítica Militante

Em vez do abandono de si, a pulsão resiliente

24.6.2016  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Bob Sousa

Um dos traços peculiares das artes contemporâneas é o embaralhamento dos registros ficcional e autobiográfico, criando formas múltiplas e híbridas nas quais o relato pessoal converte-se em obra. Buscar a confusão e o desnorteamento do receptor tornou-se um traço estilístico que gera zonas de indeterminação potentes e positivas, abrindo brechas para a emergência da subjetividade do espectador em uma participação compulsória na qual o resultado nunca está pré-definido.

Essa característica, porém, traz o risco do processo ratificar generalizações e ideias equivocadas. Isso acontece, muitas vezes, com o legado do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996). Denso e complexo, o autor é citado em textos de autoajuda e memes da internet com frases sobre a valorização da autoestima e a afirmação de vontades pessoais. Existe até mesmo aplicativos para celular com conselhos de Caio Fernando Abreu, algo alheio a seu universo ficcional sombrio e depressivo.

De outro lado, representações de um Caio extremamente melancólico e frágil são recorrentes no teatro e no cinema. Não por acaso, sua obra dramatúrgica é pouco encenada, mas seus contos são recorrentemente adaptados ou servem de inspiração para peças e curtas-metragens. É este o caso de Réquiem para um rapaz triste (2003), direção e atuação de Rodolfo Lima, que dá voz a personagens femininas do autor, e de Os dragões, da Companhia de Teatro Íntimo, construção dramática a partir do conto Os dragões não conhecem o paraíso. Outro conto, Dama da noite, foi transformado em curta com o mesmo nome em 2000 (direção de Mário Diamante, com atuação de Gilberto Gawronski) e em 2014 (direção de Dino Menezes, com atuação de Luiz Fernando de Almeida, que também protagonizou espetáculo teatral homônino, recentemente em cartaz no Centro Compartilhado de Criação, em São Paulo).

A experiência artística encontrada em ‘Os dois e aquele muro’ e ‘Amarelo distante’ pede a cada espectador entrar com seus desejos e devires

Em comum, seja em seu otimismo nas redes sociais ou em suas facetas sombrias nas adaptações para palco ou tela, reforça-se a imagem de uma pessoa delicada, quase quebradiça. A fragilidade apresenta-se como chave de interpretação, tanto para apontar caminhos de superação quanto para entregar-se a lamentos intermináveis. É nesse bojo que os espetáculos Amarelo distante e Os dois e aquele muro se destacam. Ambos lançam novas chaves de interpretação para o universo de Caio Fernando de Abreu, substituindo o frágil pelo trágico e fazendo emergir imagens viris, ainda que atormentadas. Essa abordagem é praticamente inédita e inverte polaridades. No lugar de um abandono de si, uma pulsão resiliente.

Amarelo distante estreou em 25 de fevereiro passado, mesmo dia em que se completavam 20 anos da morte do escritor, no Teatro Augusta. Ainda neste ano, faz segunda temporada no Viga Espaço Cênico, até 26 de junho. Também já se apresentou na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, na capital, e no Teatro Municipal de São João da Boa Vista (SP). Escrita e dirigida por Kiko Rieser, toma como ponto de partida os contos Lixo e purpurina e Anotações sobre um amor urbano. Na peça, coloca-se em cena uma espécie de diário de Caio Fernando Abreu em Londres, no início da década de 1970. Em forma de relato autobiográfico, conta as agruras de sobreviver de subempregos, passar fome, ser sucessivamente expulso dos lugares onde morou, ser humilhado pelos serviços de assistência social.

O ator Mateus Monteiro no solo 'Amarelo distante'Heloísa Bortz

O ator Mateus Monteiro no solo ‘Amarelo distante’

Por ser abertamente homossexual e, em suas obras, associar a ditadura militar à tristeza e à infelicidade, o autor começou a ser perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) no final da década de 1960. Em 1968, para fugir das perseguições, foi morar na casa da escritora Hilda Hilst, em Campinas. No início da década seguinte, se exilou por um ano na Europa, morando na Espanha, na Suécia, nos Países Baixos, na Inglaterra e na França, retornando ao Brasil somente em 1974.

O personagem Caio é construído em Amarelo distante como um corpo abjeto, que não se insere nos dispositivos sociais de controle. Homossexual, latino-americano, militante de esquerda, artista e sem dinheiro apresenta-se em uma constante situação de marginalidade, que só a volta ao país seria a saída. Mas a terra natal, naquele momento, também não o queria. Desencanta-se, assim, a imagem feliz do universo hippie. A filósofa norte-americana Judith Butler, no livro Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? (Editora Civilização Brasileira, 2015), relaciona essa condição abjeta à precariedade. São corpos passíveis de serem violentados. É esta a situação em que encontra-se Caio em Amarelo distante. Diz a personagem:

“Sylvia me acordou às quatro da manhã para irmos com Zé Tentar conseguir trabalho na fábrica. Ninguém tinha dinheiro pra café nem nada. Os carros tinham uma camada de gelo em cima, como se tentassem se esconder, como nós, como estrangeiros ilegais, fazemos o tempo todo”.

O personagem percorre a jornada do herói, enfrentado desafios que se impõem durante o percurso.

O ator Mateus Monteiro não possui o porte físico (o chamado physique du rôle) que seria esperado de um intérprete de Caio Fernando Abreu. Ao contrário do escritor, seu corpo é forte, bem definido, com contornos de músculos que podem ser vistos através de seu figurino. Essa imagem, no entanto, reforça o caráter heroico de seu personagem. A fala e a imagem harmonizam-se em Amarelo distante.

Já em Os dois e aquele muro, texto de Ed Anderson e direção de Francisco Medeiros, em cartaz no Espaço Os Fofos Encenam até início de agosto, os personagens Jonas (Luciano Gatti) e Lúcio (Plínio Soares) são anti-heróis que expõem suas falhas ao longo do espetáculo. Não é uma adaptação direta de Caio Fernando Abreu, mas, como é possível perceber a partir do título, relaciona-se com os contos Aqueles dois e Carta para além do mundo. Na trama, Jonas e Lúcio se encontram pessoalmente pela primeira vez. Um é arquiteto. O outro, colecionador de antiguidades. Os dois se conheceram pela internet e passam agora pela prova do contato real. “Acho que no computador, no telefone… Sei lá, era mais fácil para mim.”, lamenta-se Jonas.

Luciano Gatti e Plínio Soares contracenam em texto de CaioBob Sousa

Luciano Gatti e Plínio Soares contracenam em texto de Caio

Desde as primeiras cenas, vislumbra-se a desilusão que virá inexoravelmente logo que o encantamento inicial se dissipar. Se somos condenados à liberdade, nossa pena vem na forma de desencontros e desilusões. “A gaiola sempre esteve aberta”, diz Lúcio. “Excesso de liberdade também faz mal, sabia?”, responde Jonas. Assim como no conto Aqueles dois, Jonas e Lúcio erguem barreiras para que não precisem revelar-se integralmente, muros que preservam a intimidade de cada um, sem que se desenvolva nenhum laço menos frouxo entre eles. Aos olhos de quem vê de fora, parecem formar um casal. De perto, na privacidade de um apartamento, apresentam-se confusos e perdidos.

Da mesma forma que em Carta para além do muro, o mundo exterior é somente um pretexto para que cada personagem monologue, ainda que tentem o diálogo. Assim como no conto, a chuva aparece como metáfora para os sentimentos que impedem a ação, uma desculpa apropriada e não convincente. A imagem do muro, por sua vez, remete não a dificuldades reais, mas sim a fantasias que Jonas e Lúcio foram construindo antes de se encontrarem e que os impedem de ter um envolvimento afetivo maior.

Francisco Medeiros trabalhou diretamente com Caio Fernando Abreu na montagem de Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, em 1977. Sua direção, assim como a de Kiko Rieser em Amarelo distante, é calcada menos no espetacular e mais no trabalho de ator. Assim, a dramaturgia se sobressai. Ambos os cenários são simples e escuros, com jogos de luz que tendem à escuridão. Não é pertinente buscar nessas duas peças uma fidelidade ao Caio real ou a seus contos. Ao contrário, a experiência artística encontrada, resultado da fluidez entre o real e o ficcional, é da ordem da criação, na qual cada espectador entra com seus desejos e devires.

Em tempo: entre as muitas montagens de trabalhos gerados a partir dos contos do autor, cabe lembrar, além das já citadas: Aqueles dois, da companhia mineira Luna Lunera, que estreou em 2007; e Cartas para além do muro, da companhia carioca Epifania, em 2011. A peça A maldição do lago negro, escrita em parceria com Luiz Arthur Nunes, teve montagens memoráveis, uma pelo próprio Nunes, em 2005, com os atores Marcos Breda e Camila Pitanga, e outra por Marco Antônio Rodrigues, em 2001, com o Grupo Folias D´Arte.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Ficha técnica:
Os dois e aquele muro
Texto: Ed Anderson
Direção: Francisco Medeiros
Com: Luciano Gatti e Plínio Soares
Assistência de direção e trilha sonora: Aline Meyer
Cenografia: Heron Medeiros
Figurinos: Marichilene Artisevskis
Iluminação: Domingos Quintiliano
Preparação corporal: Bruna Longo
Direção de produção: Maurício Inafre
Produção executiva: Ana Elisa Mattos
Assistência de produção: Murilo Carvalho
Assessoria de imprensa: Douglas Picchetti e Helô Cintra

Serviço:
Os dois e aquele muro
Onde: Espaço dos Fofos (Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista, São Paulo)
Quando: Segunda, terça e quarta-feira, às 21h. Até 3/8
Quanto: R$ 30 (grátis para professores e alunos da rede municipal de ensino)
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: 16 anos

Monteiro no solo dirigido por FulanoHeloísa Bortz

Monteiro no solo dirigido por Kiko Rieser

Ficha técnica:
Amarelo distante
Texto e direção: Kiko Rieser
Com: Mateus Monteiro
Cenário e figurino: Cássio Brasil
Iluminação: Karine Spuri
Fotografia: Heloísa Bortz
Arte gráfica: David Schumaker
Assessoria de imprensa: Douglas Picchetti e Helô Cintra
Produção: Kiko Rieser e Mateus Monteiro
Realização: Rieser Produções Artísticas

Serviço:
Amarelo distante
Onde: Viga Espaço Cênico – Sala Piscina (Rua Capote Valente, 1.323, Pinheiros, São Paulo, tel. 11 3801-1843)
Quando: Sábados, às 21h, e domingo, às 20h. Até Até 26/6
Quanto: R$ 40
Duração: 65 min
Indicação etária: 14 anos

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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